segunda-feira, 19 de dezembro de 2011

Artigo: Sala de Estado-Maior.


por Renato Brasileiro

Os conceitos de sala de Estado-Maior e de prisão especial não se confundem e a prerrogativa de recolhimento naquela não se reduz à prisão especial de que trata o art. 295 do CPP.

Se por Estado-Maior se entende o grupo de oficiais que assessoram o Comandante de uma organização militar (Exército, Marinha, Aeronáutica, Corpo de Bombeiros e Polícia Militar), sala de Estado-Maior é o compartimento de qualquer unidade militar que, ainda que potencialmente, possa ser por eles utilizado para exercer suas funções. Destarte, enquanto uma “cela” tem como finalidade típica o aprisionamento de alguém e, em razão disso, possui grades, em regra, uma “sala” apenas ocasionalmente é destinada para esse fim, além de oferecer instalações e comodidades condignas, isto é, condições adequadas de higiene e segurança. Compreende-se a sala de Estado-Maior, portanto, como uma sala e não cela, instalada no Comando das Forças Armadas ou de outras instituições militares, configurando tipo heterodoxo de prisão, eis que destituída de grades ou de portas fechadas pelo lado de fora.[1]

O direito à sala de Estado-Maior somente se refere às hipóteses de prisão cautelar, assemelhando-se, assim, à prisão especial, cujo direito também cessa com o trânsito em julgado da sentença condenatória[2].

No entanto, membros do Ministério Público da União (LC n. 75/93, art. 18, inciso II, “e”), integrantes da Polícia Civil do Distrito Federal e da União (Lei n. 4.878/65, art. 40, §3º) e presos que, ao tempo do fato, eram funcionários da administração da Justiça Criminal (LEP, art. 84, §2º, c/c o art. 106, §3º) terão direito à cela separada dos demais presos, mesmo durante a execução da prisão definitiva. Apesar de não existir dispositivo específico para o juiz, compreende-se que o magistrado estaria inserido no permissivo do art. 84, §2º, da LEP, por tratar-se de funcionário da Justiça Criminal. Tais dispositivos visam preservar a integridade física e moral do preso (CF, art. 5º, inciso XLIX), evitando que esse condenado permaneça no meio de presos que possam nutrir sentimentos de vingança contra o funcionário ou ex-funcionário da Justiça Criminal[3].

Fazem jus à sala de Estado-Maior:

1. Membros do Ministério Público. Dispõe o art. 40 da Lei n. 8.625/93 que constituem prerrogativas dos membros do Ministério Público, além de outras previstas na Lei Orgânica: “(...) III - ser preso somente por ordem judicial escrita, salvo em flagrante de crime inafiançável, caso em que a autoridade fará, no prazo máximo de vinte e quatro horas, a comunicação e a apresentação do membro do Ministério Público ao Procurador-Geral de Justiça; IV - ser processado e julgado originariamente pelo Tribunal de Justiça de seu Estado, nos crimes comuns e de responsabilidade, ressalvada exceção de ordem constitucional; V - ser custodiado ou recolhido à prisão domiciliar ou à sala especial de Estado Maior, por ordem e à disposição do Tribunal competente, quando sujeito à prisão antes do julgamento final (...)”. Por sua vez, de acordo com o art. 18, inciso II, da LC n. 75/93, são prerrogativas processuais dos membros do Ministério Público da União: “(...) d) ser preso ou detido somente por ordem escrita do tribunal competente ou em razão de flagrante de crime inafiançável, caso em que a autoridade fará imediata comunicação àquele tribunal e ao Procurador-Geral da República, sob pena de responsabilidade; e) ser recolhido à prisão especial ou à sala especial de Estado-Maior, com direito a privacidade e à disposição do tribunal competente para o julgamento, quando sujeito a prisão antes da decisão final; e a dependência separada no estabelecimento em que tiver de ser cumprida a pena; f) não ser indiciado em inquérito policial, observado o disposto no parágrafo único deste artigo (...)”.

2. Membros do Poder Judiciário. De acordo com o art. 33 da LC n. 35/79, são prerrogativas do magistrado: “(...) II - não ser preso senão por ordem escrita do Tribunal ou do órgão especial competente para o julgamento, salvo em flagrante de crime inafiançável, caso em que a autoridade fará imediata comunicação e apresentação do magistrado ao Presidente do Tribunal a que esteja vinculado (vetado); III - ser recolhido a prisão especial, ou a sala especial de Estado-Maior, por ordem e à disposição do Tribunal ou do órgão especial competente, quando sujeito a prisão antes do julgamento final (...)”.

3. Membros da Defensoria Pública. De acordo com os arts. 44, inciso III, e 128, inciso III, da Lei Complementar n. 80/94, são prerrogativas dos membros da Defensoria Pública: “(...) III - ser recolhido a prisão especial ou a sala especial de Estado-Maior, com direito a privacidade e, após sentença condenatória transitada em julgado, ser recolhido em dependência separada, no estabelecimento em que tiver de ser cumprida a pena”.

4. Advogados - De acordo com o Estatuto da Ordem dos Advogados do Brasil (Lei n. 8.906/94, art. 7º), são direitos do advogado ter a presença de representante da OAB, quando preso em flagrante, por motivo ligado ao exercício da advocacia, para lavratura do auto respectivo, sob pena de nulidade e, nos demais casos, a comunicação expressa à seccional da OAB (inciso IV). Por sua vez, de acordo com o inciso V do art. 7º, ao advogado assiste o direito de não ser recolhido preso, antes de sentença transitada em julgado, senão em sala de Estado-Maior, com instalações e comodidades condignas, assim reconhecidas pela OAB, e, na sua falta, em prisão domiciliar (no julgamento da ADIN 1.127-8, o Supremo declarou a inconstitucionalidade da expressão ‘assim reconhecidas pela OAB’).

Perceba-se que, em relação ao advogado, a ausência de sala de Estado-Maior implica no seu recolhimento domiciliar[4], benefício este com o qual não foram contemplados os membros da magistratura, do Ministério Público e da Defensoria Pública.

De acordo com o entendimento pretoriano, “(...) aos profissionais da advocacia é assegurada a prerrogativa de confinamento em Sala de Estado-Maior, até o trânsito em julgado de eventual sentença condenatória. Prerrogativa, essa, que não se reduz à prisão especial de que trata o art. 295 do Código de Processo Penal. A prerrogativa de prisão em Sala de Estado-Maior tem o escopo de mais garantidamente preservar a incolumidade física daqueles que, diuturnamente, se expõem à ira e retaliações de pessoas eventualmente contrariadas com um labor advocatício em defesa de contrapartes processuais e da própria Ordem Jurídica. A advocacia exibe uma dimensão coorporativa, é certo, mas sem prejuízo do seu compromisso institucional, que já é um compromisso com os valores que permeiam todo o Ordenamento Jurídico brasileiro. A Sala de Estado-Maior se define por sua qualidade mesma de sala e não de cela ou cadeia. Sala, essa, instalada no Comando das Forças Armadas ou de outras instituições militares (Polícia Militar, Corpo de Bombeiros) e que em si mesma constitui tipo heterodoxo de prisão, porque destituída de portas ou janelas com essa específica finalidade de encarceramento. Ordem parcialmente concedida para determinar que o Juízo processante providencie a transferência do paciente para sala de uma das unidades militares do Estado de São Paulo, a ser designada pelo Secretário de Segurança Pública”.[5]

Quanto aos jornalistas, dispunha o art. 66 da Lei n. 5.250/67 (Lei de Imprensa) que o jornalista profissional não poderia ser detido nem recolhido preso antes de sentença transitada em julgado; em qualquer caso, somente em sala decente, arejada e onde encontre todas as comodidades. A pena de prisão de jornalistas, por sua vez, deve ser cumprida em estabelecimento distinto dos que são destinados a réus de crime comum e sem sujeição a qualquer regime penitenciário ou carcerário.

Ocorre que o Supremo Tribunal Federal, no julgamento da argüição de descumprimento de preceito fundamental n. 130, julgou procedente o pedido ali formulado para o efeito de declarar como não-recepcionado pela Constituição Federal todo o conjunto de dispositivos da Lei 5.250/67.

Destarte, jornalistas deixaram de ter direito à sala de Estado-Maior, subsistindo, todavia, o direito à prisão especial, caso o jornalista seja diplomado por qualquer das faculdades superiores da República (CPP, art. 295, VII).[6]

[1] STF – Rcl 4.535/ES – Tribunal Pleno – Rel. Min. Sepúlveda Pertence – DJ 15/06/2007 p. 21.
[2] “(...) A jurisprudência do Supremo Tribunal Federal consolidou o entendimento segundo o qual o réu que ostente status profissional de advogado tem direito público subjetivo à prisão especial até o trânsito em julgado da condenação. Precedentes: PET - MC nº 166/SP, Rel. Min. Carlos Madeira, 2ª Turma, unânime, DJ 2.5.1986; HC nº 72.465/SP, Rel. Min. Celso de Mello, 1ª Turma, unânime, DJ 5.9.1995; HC nº 81.632/SP, Rel. Min. Carlos Velloso, 2ª Turma, maioria, DJ 21.3.2003; e HC nº 88.702/SP, Rel. Min. Celso de Mello, 2ª Turma, unânime, DJ 24.11.2006. O juízo de origem, em nenhum momento, criou dificuldades à efetivação do direito da paciente à prisão especial. A decisão agravada ateve-se às circunstâncias do caso e apontou que o direito à prisão especial cessa com o trânsito em julgado da condenação penal. Diante da confirmação do trânsito em julgado da ação penal perante as instâncias ordinárias, recurso de agravo desprovido”. (STF – HC-AgR 82.850/SP – 2ª Turma – Rel. Min. Gilmar Mendes – DJ 28/09/2007 p. 65).
[3] “(...)      Embora os funcionários da Administração Criminal possuam direito à prisão especial mesmo após o trânsito em julgado da condenação, a execução de suas penas dar-se-á em estabelecimento penal sujeito ao mesmo sistema disciplinar e carcerário de outros presos com o mesmo regime prisional, em dependência isolada dos demais reclusos, a teor do disposto no § 2º do art. 2º do art. 84 da Lei nº 7.210/84”. (STJ – REsp 744.857/RN – 5ª Turma – Relatora Ministra Laurita Vaz – DJ 06/02/2006 p. 304).
[4] “(...) A jurisprudência firmada pelo Plenário e pelas duas Turmas desta Corte é no sentido de se garantir a prisão cautelar aos profissionais da advocacia, devidamente inscritos na Ordem dos Advogados do Brasil, em sala de Estado-Maior, nos termos do art. 7º, inc. V, da Lei nº 8.906/94 (Estatuto da Advocacia), e, não sendo possível ou não existindo dependências definidas como tal, conceder a eles o direito de prisão domiciliar”.  (STF – HC 91.150/SP – 1ª Turma – Rel. Min. Menezes Direito – DJ 31/10/2007 p. 91).
[5] STF – HC 91.089/SP – 1ª Turma – Rel. Min. Carlos Britto – DJ 19/10/2007 p. 46. Na mesma linha: STF – Rcl 4.713/SC – Tribunal Pleno – Rel. Min. Ricardo Lewandowski – DJE 041 – 07/03/08).
[6] Vale lembrar que, segundo decisão do Supremo Tribunal Federal, “(...) a exigência de diploma de curso superior para a prática do jornalismo - o qual, em sua essência, é o desenvolvimento profissional das liberdades de expressão e de informação - não está autorizada pela ordem constitucional, pois constitui uma restrição, um impedimento, uma verdadeira supressão do pleno, incondicionado e efetivo exercício da liberdade jornalística, expressamente proibido pelo art. 220, § 1º, da Constituição. (..) No campo da profissão de jornalista, não há espaço para a regulação estatal quanto às qualificações profissionais. O art. 5º, incisos IV, IX, XIV, e o art. 220, não autorizam o controle, por parte do Estado, quanto ao acesso e exercício da profissão de jornalista. Qualquer tipo de controle desse tipo, que interfira na liberdade profissional no momento do próprio acesso à atividade jornalística, configura, ao fim e ao cabo, controle prévio que, em verdade, caracteriza censura prévia das liberdades de expressão e de informação, expressamente vedada pelo art. 5º, inciso IX, da Constituição. A impossibilidade do estabelecimento de controles estatais sobre a profissão jornalística leva à conclusão de que não pode o Estado criar uma ordem ou um conselho profissional (autarquia) para a fiscalização desse tipo de profissão. O exercício do poder de polícia do Estado é vedado nesse campo em que imperam as liberdades de expressão e de informação. (...)”. (STF – RE 511.961/SP – Tribunal Pleno – Rel. Min. Gilmar Mendes – Dje 213 – 12/11/2009).

Vídeo: Direitos da personalidade do morto. Livro "Lampião - O mata sete"


Direitos da personalidade do morto. Livro "Lampião - O mata sete". O prof. Flavio Tartuce analisa a proibição do livro o juíz de Sergipe.

sexta-feira, 9 de dezembro de 2011

Artigo: Respeito à integridade moral do preso e sua indevida exposição à mídia.



 por Renato Brasileiro

De acordo com o art. 5º, inciso XLIX, da Constituição Federal, “é assegurado aos presos o respeito à integridade física e moral”. Ao proclamar o respeito à integridade física e moral dos presos, a Carta Magna garante ao preso a conservação de todos os direitos fundamentais reconhecidos à pessoa livre, à exceção, é claro, daqueles que sejam incompatíveis com a condição peculiar de uma pessoa presa, tais como a liberdade de locomoção (CF, art. 5º, XV), o livre exercício de qualquer profissão (CF, art. 5º, XIII), a inviolabilidade domiciliar em relação à cela (CF, art. 5º, XI) e o exercício dos direitos políticos (CF, art. 15, III). Não obstante, mantém o preso os demais diretos e garantias fundamentais, tais como o respeito à integridade física e moral (CF, art. 5º, III, V, X e LXIV), à liberdade religiosa (CF, art. 5º, VI), ao direito de propriedade (CF, art. 5º, XXII), e, em especial, aos direitos à vida e à dignidade humana.[1]
           
De modo semelhante, o Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos prevê em seu art. 10 que toda pessoa privada de sua liberdade deverá ser tratada com humanidade e respeito à dignidade inerente à pessoa humana, dispondo que “as pessoas processadas deverão ser separadas, salvo em circunstâncias excepcionais, das pessoas condenadas e receber tratamento distinto, condizente com sua condição de pessoas não condenadas; e, as pessoas jovens processadas deverão ser separadas das adultas e julgadas o mais rápido possível”. Na mesma linha, o Pacto de São José da Costa Rica consagra regras protetivas aos direitos dos reclusos, determinando em seu art. 5º que os processados devem ficar separados dos condenados, salvo em circunstâncias excepcionais, e devem ser submetidos a tratamento adequado a sua condição de pessoas não condenadas.

A questão relativa ao respeito à integridade moral do preso ganha importância quando se verifica a crescente importância dada pela mídia às mazelas do processo penal. Com efeito, hoje em dia, não são raras as prisões cautelares acompanhadas ao vivo pela imprensa que, coincidentemente, sempre está presente no lugar e hora marcados para registrar tudo. Tais imagens, depois, são exploradas à exaustão nos telejornais pelos doutrinadores do direito penal e processual penal, o que sempre é feito a título de informar a população. Sob os holofotes da mídia, é colocada em segundo plano a finalidade de toda e qualquer prisão cautelar, qual seja, a de assegurar a eficácia das investigações ou do processo penal. Passam as prisões cautelares, outrossim, a desempenhar um efeito sedante da opinião pública pela ilusão de justiça instantânea,[2] exercendo uma função absolutamente incoerente e proscrita para um instrumento legitimado por sua feição cautelar.

Não olvidamos a importância da liberdade de expressão, compreendida como a possibilidade de difundir livremente os pensamentos, idéias e opiniões, mediante a palavra escrita ou qualquer outro meio de reprodução. No entanto, se aos órgãos de informação é assegurada a maior liberdade possível em sua atuação, também se lhes impõe o dever de não violar princípios basilares do processo penal, substituindo o devido processo legal previsto na Constituição por um julgamento sem processo, paralelo e informal, mediante os meios de comunicação.
Oportuna, nesse sentido, a transcrição das palavras do Min. Marco Aurélio: “(...) Ninguém desconhece a necessidade de adoção de rigor no campo da definição de responsabilidade, mormente quando em jogo interesses públicos da maior envergadura. No levantamento de dados, no acompanhamento dos fatos, no esclarecimento da população, importante é o papel exercido pela imprensa. Todavia, há de se fazer presente advertência de Joaquim Falcão, veiculada sob o título A imprensa e a justiça, no Jornal O Globo, de 06.06.93: `Ser o que não se é, é errado. Imprensa não é justiça. Esta relação é um remendo. Um desvio institucional. Jornal não é fórum. Repórter não é juiz. Nem editor é desembargador. E quando, por acaso, acreditam ser, transformam a dignidade da informação na arrogância da autoridade que não têm. Não raramente, hoje, alguns jornais, ao divulgarem a denúncia alheia, acusam sem apurar. Processam sem ouvir. Colocam o réu, sem defesa, na prisão da opinião pública. Enfim, condenam sem julgar´. Exige-se do Judiciário a equidistância, a atuação desapaixonada, buscando, assim, o restabelecimento da paz jurídica momentaneamente abalada. O instituto da prisão preventiva coloca-se no campo da absoluta excepcionalidade. O certo, o constitucional é aguardar-se a formação da culpa após haver o acusado exercido, em toda a plenitude, o direito de defesa. Pedagógica é a Carta da República ao revelar algo que decorre, até mesmo, do princípio da razoabilidade, da presunção do que normalmente se verifica, da impossibilidade de inverter-se a ordem natural das coisas, assentando-se conclusão somente passível de ser alcançada ao término da instrução penal, após desincumbir-se o Ministério Público do ônus processual de comprovar, de forma robusta, a culpa do acusado. Impossível é esquecer que ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença condenatória (inc. LXVII do art. 5º da CF).”[3]

Especificamente em relação à divulgação da imagem de pessoas presas, o que se vê no dia-a-dia é uma crescente degradação da imagem e da honra produzida pelos meios de comunicação de massa, que reproduzem a imagem do preso sem que haja prévia autorização do preso, nem tampouco um fim social na sua exibição. Utilizam sua imagem, pois, como produto da notícia, a fim de saciar a curiosidade do povo. Como esclarece Eugênio Bucci, “os programas sensacionalistas do rádio e os programas policiais de fim de tarde em televisão saciam curiosidades perversas e até mórbidas tirando sua matéria-prima do drama de cidadãos humildes que aparecem nas delegacias como suspeitos de pequenos crimes. Ali, são entrevistados por intimidação. As câmeras invadem barracos e cortiços, e gravam sem pedir licença a estupefação de famílias de baixíssima renda que não sabem direito o que se passa: um parente é suspeito de estupro, ou o vizinho acaba de ser preso por tráfico, ou o primo morreu no massacre do fim de semana no bar da esquina. A polícia chega atirando; a mídia chega filmando. (...) Como vivem à margem dos direitos, essas pessoas não têm reconhecido o seu direito à privacidade; sua intimidade não existe – ou não vale nada”.[4]

Queremos crer, portanto, e seguindo a lição de Ana Lúcia Menezes Vieira,[5] que a reprodução pública da imagem de pessoas envolvidas em crimes deve ser vedada se ela resulta de modo anti-social, aflitivo ou degradante, a não ser que haja autorização do titular da imagem, ou se necessária à administração da justiça – exemplo seria o retrato falado ou a própria fotografia, para fins investigativos.

Ora, como dito acima, a condição de cidadão preso não lhe retira o direito ao respeito à integridade moral e à dignidade[6]. Seus direitos personalíssimos devem ser tutelados de forma mais eficaz, não só por jornalistas, como também por autoridades policiais e membros do Ministério Público, que devem se abster de exibir presos à mídia. E isso não só para preservar os direitos personalíssimos do preso, como também para evitar que inocentes sejam identificados indevidamente como autores de delitos.

Infelizmente, não são poucos os exemplos de pessoas que são exibidas à mídia como suspeitas da prática de delitos, mas cuja inocência é posteriormente reconhecida. Além do célebre episódio da “Escola Base”[7], e do denominado crime do Bar Bodega[8], em um caso ocorrido em novembro de 2006, no bairro de Perdizes, localizado na cidade de São Paulo, relativo a um casal de idosos que foi encontrado morto a facadas dentro de sua residência, a Polícia apressou-se em apontar o filho do casal como suspeito de ter praticado o duplo homicídio, já que não foram encontrados inicialmente sinais de arrombamento nem de sangue na residência. Como conseqüência do açodamento da Polícia, e da imediata divulgação pela imprensa que induziram uma pré-convicção de culpa do filho do casal, a casa em que residia a família foi pichada com a palavra assassino, em referência ao filho do casal, que também passou a ser hostilizado pelos moradores do bairro. Posteriormente, no entanto, a mesma Polícia encontrou manchas de sangue na casa ao lado, além de pegadas na parte de dentro da residência onde ocorreu o crime até o muro, confirmando uma rota de fuga usada pelo verdadeiro autor do delito. Dois dias depois, o criminoso apresentou-se à Polícia, sendo com ele apreendida a faca utilizada no crime. Difícil expressar o prejuízo causado ao filho do casal: além de perder seus pais, em um crime bárbaro e cruel, foi apontado pelas autoridades policiais como suposto autor do delito, sendo, então, submetido ao tradicional linchamento midiático, e transformado, aos olhos da população, em culpado. Por mais que a mídia se apressasse depois em desfazer o equívoco, já era tarde demais: a violência já estava consumada.
Apesar de a legislação brasileira não possuir normas infraconstitucionais regulamentando a publicidade mediata das investigações e dos atos judiciais, a fim de preservar os direitos personalíssimos do preso (CF, art. 5º, incisos X e XLIX), é possível encontrar alguma normatização do assunto através de Portarias e Regulamentos dos próprios órgãos policiais.

A título de exemplo, dispõe o art. 11 da Portaria nº 18 da Delegacia Geral de Polícia do Estado de São Paulo[9]: “As autoridades policiais e demais servidores zelarão pela preservação dos direitos à imagem, ao nome, à privacidade e à intimidade das pessoas submetidas à investigação policial, detidas em razão da prática de infração penal ou a sua disposição na condição de vítimas, em especial enquanto se encontrarem no recinto de repartições policiais, a fim de que a elas e a seus familiares não sejam causados prejuízos irreparáveis, decorrentes da exposição de imagem ou de divulgação liminar de circunstância objeto de apuração. Parágrafo único. As pessoas referidas nesse artigo, após orientadas sobre seus direitos constitucionais, somente serão fotografadas, entrevistadas ou terão suas imagens por qualquer meio registradas, se expressamente o consentirem mediante manifestação explícita de vontade, por escrito ou por termo devidamente assinado, observando-se ainda as correlatas normas editadas pelos Juízos Corregedores da Polícia Judiciária das Comarcas”. Oxalá seja a referida portaria observada no dia-a-dia de delegacias e fóruns criminais.


[1] MORAES, Alexandre de. Constituição do Brasil: interpretada e legislação constitucional. 5ª ed. São Paulo: Atlas, 2005. 338.
[2]  LOPES JR. Aury; BADARÓ, Gustavo Henrique. Direito ao Processo Penal no prazo razoável. Rio de Janeiro. Editora Lumen Juris: 2006. p. 55.
[3] STF – HC – Liminar – Rel. Marco Aurélio – j. 14.06.2000 – Revista Síntese 3/141.
[4] BUCCI, Eugênio. Sobre ética e imprensa. São Paulo: Companhia das Letras, 2000. 156. Apud VIEIRA, Ana Lúcia Menezes. Processo penal e mídia. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2003. p. 156.
[5] VIEIRA, Ana Lúcia Menezes. Processo penal e mídia. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2003. p. 153.
[6] SUANNES, Adauto. Os fundamentos éticos do devido processo penal. 2ª ed. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2004. p. 181.
[7] Trata-se de um dos mais emblemáticos casos de assassinato moral de inocentes, na dicção de Ana Lúcia Menezes Vieira. Os responsáveis pela referida escola foram dados pela mídia como autores de abusos sexuais contra crianças de classe média. A escola foi alvo de depredação, seus proprietários tiveram que abandonar os empregos, e também não podiam sair às ruas, porque corriam o risco de sofrer agressões em público, na medida em que a imprensa divulgava suas fotos. O inquérito policial, no entanto, acabou sendo arquivado por falta de elementos de informação que evidenciassem a prática dos crimes sexuais.
[8] “O denominado crime do bar Bodega, ocorrido no dia 10 de agosto de 1996, no interior de uma choperia localizada em Moema, bairro nobre da cidade de São Paulo, no qual dois jovens da classe média paulistana morreram, de forma brutal e desnecessária, comoveu a opinião pública do Estado. Pressionada, 15 dias após o evento criminoso, a polícia apresentou aqueles que seriam os responsáveis pela morte das vítimas: cinco jovens negros e pobres, moradores da periferia da região da Grande São Paulo. Expostos à imprensa como animais bravios, algemados e com placas dependuradas em seus corpos, indicando números, foram fotografados, filmados e entrevistados por dezenas de repórteres de rádio, tevês, jornais e revistas. No final do mês passado, entretanto, foram colocados em liberdade, pois o Ministério Público não encontrou suficiência de elementos de prova nos autos, no sentido de indicar suas participações no crime e identificou sérios indícios de que teriam confessado o delito sob os mais cruéis métodos de tortura. Parte da imprensa, então, deu-se conta de que, mais uma vez, a exemplo do ocorrido recentemente no chamado crime da Escola Base, embarcou em notícia de uma investigação infeliz da polícia, que, salvo novas evidências em contrário, inicialmente identificou inocentes como os verdadeiros autores do duplo latrocínio. (...)”. (SILVA, Eduardo Araújo. O papel da imprensa no caso do Bar Bodega. Isto é, 4 dez. 1996, p. 151. Apud VIEIRA, Ana Lúcia Menezes. Processo penal e mídia. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2003. p. 169). 
[9] Publicada no DOE de 27 de novembro de 1998.