sexta-feira, 9 de dezembro de 2011

Artigo: Respeito à integridade moral do preso e sua indevida exposição à mídia.



 por Renato Brasileiro

De acordo com o art. 5º, inciso XLIX, da Constituição Federal, “é assegurado aos presos o respeito à integridade física e moral”. Ao proclamar o respeito à integridade física e moral dos presos, a Carta Magna garante ao preso a conservação de todos os direitos fundamentais reconhecidos à pessoa livre, à exceção, é claro, daqueles que sejam incompatíveis com a condição peculiar de uma pessoa presa, tais como a liberdade de locomoção (CF, art. 5º, XV), o livre exercício de qualquer profissão (CF, art. 5º, XIII), a inviolabilidade domiciliar em relação à cela (CF, art. 5º, XI) e o exercício dos direitos políticos (CF, art. 15, III). Não obstante, mantém o preso os demais diretos e garantias fundamentais, tais como o respeito à integridade física e moral (CF, art. 5º, III, V, X e LXIV), à liberdade religiosa (CF, art. 5º, VI), ao direito de propriedade (CF, art. 5º, XXII), e, em especial, aos direitos à vida e à dignidade humana.[1]
           
De modo semelhante, o Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos prevê em seu art. 10 que toda pessoa privada de sua liberdade deverá ser tratada com humanidade e respeito à dignidade inerente à pessoa humana, dispondo que “as pessoas processadas deverão ser separadas, salvo em circunstâncias excepcionais, das pessoas condenadas e receber tratamento distinto, condizente com sua condição de pessoas não condenadas; e, as pessoas jovens processadas deverão ser separadas das adultas e julgadas o mais rápido possível”. Na mesma linha, o Pacto de São José da Costa Rica consagra regras protetivas aos direitos dos reclusos, determinando em seu art. 5º que os processados devem ficar separados dos condenados, salvo em circunstâncias excepcionais, e devem ser submetidos a tratamento adequado a sua condição de pessoas não condenadas.

A questão relativa ao respeito à integridade moral do preso ganha importância quando se verifica a crescente importância dada pela mídia às mazelas do processo penal. Com efeito, hoje em dia, não são raras as prisões cautelares acompanhadas ao vivo pela imprensa que, coincidentemente, sempre está presente no lugar e hora marcados para registrar tudo. Tais imagens, depois, são exploradas à exaustão nos telejornais pelos doutrinadores do direito penal e processual penal, o que sempre é feito a título de informar a população. Sob os holofotes da mídia, é colocada em segundo plano a finalidade de toda e qualquer prisão cautelar, qual seja, a de assegurar a eficácia das investigações ou do processo penal. Passam as prisões cautelares, outrossim, a desempenhar um efeito sedante da opinião pública pela ilusão de justiça instantânea,[2] exercendo uma função absolutamente incoerente e proscrita para um instrumento legitimado por sua feição cautelar.

Não olvidamos a importância da liberdade de expressão, compreendida como a possibilidade de difundir livremente os pensamentos, idéias e opiniões, mediante a palavra escrita ou qualquer outro meio de reprodução. No entanto, se aos órgãos de informação é assegurada a maior liberdade possível em sua atuação, também se lhes impõe o dever de não violar princípios basilares do processo penal, substituindo o devido processo legal previsto na Constituição por um julgamento sem processo, paralelo e informal, mediante os meios de comunicação.
Oportuna, nesse sentido, a transcrição das palavras do Min. Marco Aurélio: “(...) Ninguém desconhece a necessidade de adoção de rigor no campo da definição de responsabilidade, mormente quando em jogo interesses públicos da maior envergadura. No levantamento de dados, no acompanhamento dos fatos, no esclarecimento da população, importante é o papel exercido pela imprensa. Todavia, há de se fazer presente advertência de Joaquim Falcão, veiculada sob o título A imprensa e a justiça, no Jornal O Globo, de 06.06.93: `Ser o que não se é, é errado. Imprensa não é justiça. Esta relação é um remendo. Um desvio institucional. Jornal não é fórum. Repórter não é juiz. Nem editor é desembargador. E quando, por acaso, acreditam ser, transformam a dignidade da informação na arrogância da autoridade que não têm. Não raramente, hoje, alguns jornais, ao divulgarem a denúncia alheia, acusam sem apurar. Processam sem ouvir. Colocam o réu, sem defesa, na prisão da opinião pública. Enfim, condenam sem julgar´. Exige-se do Judiciário a equidistância, a atuação desapaixonada, buscando, assim, o restabelecimento da paz jurídica momentaneamente abalada. O instituto da prisão preventiva coloca-se no campo da absoluta excepcionalidade. O certo, o constitucional é aguardar-se a formação da culpa após haver o acusado exercido, em toda a plenitude, o direito de defesa. Pedagógica é a Carta da República ao revelar algo que decorre, até mesmo, do princípio da razoabilidade, da presunção do que normalmente se verifica, da impossibilidade de inverter-se a ordem natural das coisas, assentando-se conclusão somente passível de ser alcançada ao término da instrução penal, após desincumbir-se o Ministério Público do ônus processual de comprovar, de forma robusta, a culpa do acusado. Impossível é esquecer que ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença condenatória (inc. LXVII do art. 5º da CF).”[3]

Especificamente em relação à divulgação da imagem de pessoas presas, o que se vê no dia-a-dia é uma crescente degradação da imagem e da honra produzida pelos meios de comunicação de massa, que reproduzem a imagem do preso sem que haja prévia autorização do preso, nem tampouco um fim social na sua exibição. Utilizam sua imagem, pois, como produto da notícia, a fim de saciar a curiosidade do povo. Como esclarece Eugênio Bucci, “os programas sensacionalistas do rádio e os programas policiais de fim de tarde em televisão saciam curiosidades perversas e até mórbidas tirando sua matéria-prima do drama de cidadãos humildes que aparecem nas delegacias como suspeitos de pequenos crimes. Ali, são entrevistados por intimidação. As câmeras invadem barracos e cortiços, e gravam sem pedir licença a estupefação de famílias de baixíssima renda que não sabem direito o que se passa: um parente é suspeito de estupro, ou o vizinho acaba de ser preso por tráfico, ou o primo morreu no massacre do fim de semana no bar da esquina. A polícia chega atirando; a mídia chega filmando. (...) Como vivem à margem dos direitos, essas pessoas não têm reconhecido o seu direito à privacidade; sua intimidade não existe – ou não vale nada”.[4]

Queremos crer, portanto, e seguindo a lição de Ana Lúcia Menezes Vieira,[5] que a reprodução pública da imagem de pessoas envolvidas em crimes deve ser vedada se ela resulta de modo anti-social, aflitivo ou degradante, a não ser que haja autorização do titular da imagem, ou se necessária à administração da justiça – exemplo seria o retrato falado ou a própria fotografia, para fins investigativos.

Ora, como dito acima, a condição de cidadão preso não lhe retira o direito ao respeito à integridade moral e à dignidade[6]. Seus direitos personalíssimos devem ser tutelados de forma mais eficaz, não só por jornalistas, como também por autoridades policiais e membros do Ministério Público, que devem se abster de exibir presos à mídia. E isso não só para preservar os direitos personalíssimos do preso, como também para evitar que inocentes sejam identificados indevidamente como autores de delitos.

Infelizmente, não são poucos os exemplos de pessoas que são exibidas à mídia como suspeitas da prática de delitos, mas cuja inocência é posteriormente reconhecida. Além do célebre episódio da “Escola Base”[7], e do denominado crime do Bar Bodega[8], em um caso ocorrido em novembro de 2006, no bairro de Perdizes, localizado na cidade de São Paulo, relativo a um casal de idosos que foi encontrado morto a facadas dentro de sua residência, a Polícia apressou-se em apontar o filho do casal como suspeito de ter praticado o duplo homicídio, já que não foram encontrados inicialmente sinais de arrombamento nem de sangue na residência. Como conseqüência do açodamento da Polícia, e da imediata divulgação pela imprensa que induziram uma pré-convicção de culpa do filho do casal, a casa em que residia a família foi pichada com a palavra assassino, em referência ao filho do casal, que também passou a ser hostilizado pelos moradores do bairro. Posteriormente, no entanto, a mesma Polícia encontrou manchas de sangue na casa ao lado, além de pegadas na parte de dentro da residência onde ocorreu o crime até o muro, confirmando uma rota de fuga usada pelo verdadeiro autor do delito. Dois dias depois, o criminoso apresentou-se à Polícia, sendo com ele apreendida a faca utilizada no crime. Difícil expressar o prejuízo causado ao filho do casal: além de perder seus pais, em um crime bárbaro e cruel, foi apontado pelas autoridades policiais como suposto autor do delito, sendo, então, submetido ao tradicional linchamento midiático, e transformado, aos olhos da população, em culpado. Por mais que a mídia se apressasse depois em desfazer o equívoco, já era tarde demais: a violência já estava consumada.
Apesar de a legislação brasileira não possuir normas infraconstitucionais regulamentando a publicidade mediata das investigações e dos atos judiciais, a fim de preservar os direitos personalíssimos do preso (CF, art. 5º, incisos X e XLIX), é possível encontrar alguma normatização do assunto através de Portarias e Regulamentos dos próprios órgãos policiais.

A título de exemplo, dispõe o art. 11 da Portaria nº 18 da Delegacia Geral de Polícia do Estado de São Paulo[9]: “As autoridades policiais e demais servidores zelarão pela preservação dos direitos à imagem, ao nome, à privacidade e à intimidade das pessoas submetidas à investigação policial, detidas em razão da prática de infração penal ou a sua disposição na condição de vítimas, em especial enquanto se encontrarem no recinto de repartições policiais, a fim de que a elas e a seus familiares não sejam causados prejuízos irreparáveis, decorrentes da exposição de imagem ou de divulgação liminar de circunstância objeto de apuração. Parágrafo único. As pessoas referidas nesse artigo, após orientadas sobre seus direitos constitucionais, somente serão fotografadas, entrevistadas ou terão suas imagens por qualquer meio registradas, se expressamente o consentirem mediante manifestação explícita de vontade, por escrito ou por termo devidamente assinado, observando-se ainda as correlatas normas editadas pelos Juízos Corregedores da Polícia Judiciária das Comarcas”. Oxalá seja a referida portaria observada no dia-a-dia de delegacias e fóruns criminais.


[1] MORAES, Alexandre de. Constituição do Brasil: interpretada e legislação constitucional. 5ª ed. São Paulo: Atlas, 2005. 338.
[2]  LOPES JR. Aury; BADARÓ, Gustavo Henrique. Direito ao Processo Penal no prazo razoável. Rio de Janeiro. Editora Lumen Juris: 2006. p. 55.
[3] STF – HC – Liminar – Rel. Marco Aurélio – j. 14.06.2000 – Revista Síntese 3/141.
[4] BUCCI, Eugênio. Sobre ética e imprensa. São Paulo: Companhia das Letras, 2000. 156. Apud VIEIRA, Ana Lúcia Menezes. Processo penal e mídia. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2003. p. 156.
[5] VIEIRA, Ana Lúcia Menezes. Processo penal e mídia. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2003. p. 153.
[6] SUANNES, Adauto. Os fundamentos éticos do devido processo penal. 2ª ed. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2004. p. 181.
[7] Trata-se de um dos mais emblemáticos casos de assassinato moral de inocentes, na dicção de Ana Lúcia Menezes Vieira. Os responsáveis pela referida escola foram dados pela mídia como autores de abusos sexuais contra crianças de classe média. A escola foi alvo de depredação, seus proprietários tiveram que abandonar os empregos, e também não podiam sair às ruas, porque corriam o risco de sofrer agressões em público, na medida em que a imprensa divulgava suas fotos. O inquérito policial, no entanto, acabou sendo arquivado por falta de elementos de informação que evidenciassem a prática dos crimes sexuais.
[8] “O denominado crime do bar Bodega, ocorrido no dia 10 de agosto de 1996, no interior de uma choperia localizada em Moema, bairro nobre da cidade de São Paulo, no qual dois jovens da classe média paulistana morreram, de forma brutal e desnecessária, comoveu a opinião pública do Estado. Pressionada, 15 dias após o evento criminoso, a polícia apresentou aqueles que seriam os responsáveis pela morte das vítimas: cinco jovens negros e pobres, moradores da periferia da região da Grande São Paulo. Expostos à imprensa como animais bravios, algemados e com placas dependuradas em seus corpos, indicando números, foram fotografados, filmados e entrevistados por dezenas de repórteres de rádio, tevês, jornais e revistas. No final do mês passado, entretanto, foram colocados em liberdade, pois o Ministério Público não encontrou suficiência de elementos de prova nos autos, no sentido de indicar suas participações no crime e identificou sérios indícios de que teriam confessado o delito sob os mais cruéis métodos de tortura. Parte da imprensa, então, deu-se conta de que, mais uma vez, a exemplo do ocorrido recentemente no chamado crime da Escola Base, embarcou em notícia de uma investigação infeliz da polícia, que, salvo novas evidências em contrário, inicialmente identificou inocentes como os verdadeiros autores do duplo latrocínio. (...)”. (SILVA, Eduardo Araújo. O papel da imprensa no caso do Bar Bodega. Isto é, 4 dez. 1996, p. 151. Apud VIEIRA, Ana Lúcia Menezes. Processo penal e mídia. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2003. p. 169). 
[9] Publicada no DOE de 27 de novembro de 1998.

Nenhum comentário:

Postar um comentário