segunda-feira, 19 de dezembro de 2011

Artigo: Sala de Estado-Maior.


por Renato Brasileiro

Os conceitos de sala de Estado-Maior e de prisão especial não se confundem e a prerrogativa de recolhimento naquela não se reduz à prisão especial de que trata o art. 295 do CPP.

Se por Estado-Maior se entende o grupo de oficiais que assessoram o Comandante de uma organização militar (Exército, Marinha, Aeronáutica, Corpo de Bombeiros e Polícia Militar), sala de Estado-Maior é o compartimento de qualquer unidade militar que, ainda que potencialmente, possa ser por eles utilizado para exercer suas funções. Destarte, enquanto uma “cela” tem como finalidade típica o aprisionamento de alguém e, em razão disso, possui grades, em regra, uma “sala” apenas ocasionalmente é destinada para esse fim, além de oferecer instalações e comodidades condignas, isto é, condições adequadas de higiene e segurança. Compreende-se a sala de Estado-Maior, portanto, como uma sala e não cela, instalada no Comando das Forças Armadas ou de outras instituições militares, configurando tipo heterodoxo de prisão, eis que destituída de grades ou de portas fechadas pelo lado de fora.[1]

O direito à sala de Estado-Maior somente se refere às hipóteses de prisão cautelar, assemelhando-se, assim, à prisão especial, cujo direito também cessa com o trânsito em julgado da sentença condenatória[2].

No entanto, membros do Ministério Público da União (LC n. 75/93, art. 18, inciso II, “e”), integrantes da Polícia Civil do Distrito Federal e da União (Lei n. 4.878/65, art. 40, §3º) e presos que, ao tempo do fato, eram funcionários da administração da Justiça Criminal (LEP, art. 84, §2º, c/c o art. 106, §3º) terão direito à cela separada dos demais presos, mesmo durante a execução da prisão definitiva. Apesar de não existir dispositivo específico para o juiz, compreende-se que o magistrado estaria inserido no permissivo do art. 84, §2º, da LEP, por tratar-se de funcionário da Justiça Criminal. Tais dispositivos visam preservar a integridade física e moral do preso (CF, art. 5º, inciso XLIX), evitando que esse condenado permaneça no meio de presos que possam nutrir sentimentos de vingança contra o funcionário ou ex-funcionário da Justiça Criminal[3].

Fazem jus à sala de Estado-Maior:

1. Membros do Ministério Público. Dispõe o art. 40 da Lei n. 8.625/93 que constituem prerrogativas dos membros do Ministério Público, além de outras previstas na Lei Orgânica: “(...) III - ser preso somente por ordem judicial escrita, salvo em flagrante de crime inafiançável, caso em que a autoridade fará, no prazo máximo de vinte e quatro horas, a comunicação e a apresentação do membro do Ministério Público ao Procurador-Geral de Justiça; IV - ser processado e julgado originariamente pelo Tribunal de Justiça de seu Estado, nos crimes comuns e de responsabilidade, ressalvada exceção de ordem constitucional; V - ser custodiado ou recolhido à prisão domiciliar ou à sala especial de Estado Maior, por ordem e à disposição do Tribunal competente, quando sujeito à prisão antes do julgamento final (...)”. Por sua vez, de acordo com o art. 18, inciso II, da LC n. 75/93, são prerrogativas processuais dos membros do Ministério Público da União: “(...) d) ser preso ou detido somente por ordem escrita do tribunal competente ou em razão de flagrante de crime inafiançável, caso em que a autoridade fará imediata comunicação àquele tribunal e ao Procurador-Geral da República, sob pena de responsabilidade; e) ser recolhido à prisão especial ou à sala especial de Estado-Maior, com direito a privacidade e à disposição do tribunal competente para o julgamento, quando sujeito a prisão antes da decisão final; e a dependência separada no estabelecimento em que tiver de ser cumprida a pena; f) não ser indiciado em inquérito policial, observado o disposto no parágrafo único deste artigo (...)”.

2. Membros do Poder Judiciário. De acordo com o art. 33 da LC n. 35/79, são prerrogativas do magistrado: “(...) II - não ser preso senão por ordem escrita do Tribunal ou do órgão especial competente para o julgamento, salvo em flagrante de crime inafiançável, caso em que a autoridade fará imediata comunicação e apresentação do magistrado ao Presidente do Tribunal a que esteja vinculado (vetado); III - ser recolhido a prisão especial, ou a sala especial de Estado-Maior, por ordem e à disposição do Tribunal ou do órgão especial competente, quando sujeito a prisão antes do julgamento final (...)”.

3. Membros da Defensoria Pública. De acordo com os arts. 44, inciso III, e 128, inciso III, da Lei Complementar n. 80/94, são prerrogativas dos membros da Defensoria Pública: “(...) III - ser recolhido a prisão especial ou a sala especial de Estado-Maior, com direito a privacidade e, após sentença condenatória transitada em julgado, ser recolhido em dependência separada, no estabelecimento em que tiver de ser cumprida a pena”.

4. Advogados - De acordo com o Estatuto da Ordem dos Advogados do Brasil (Lei n. 8.906/94, art. 7º), são direitos do advogado ter a presença de representante da OAB, quando preso em flagrante, por motivo ligado ao exercício da advocacia, para lavratura do auto respectivo, sob pena de nulidade e, nos demais casos, a comunicação expressa à seccional da OAB (inciso IV). Por sua vez, de acordo com o inciso V do art. 7º, ao advogado assiste o direito de não ser recolhido preso, antes de sentença transitada em julgado, senão em sala de Estado-Maior, com instalações e comodidades condignas, assim reconhecidas pela OAB, e, na sua falta, em prisão domiciliar (no julgamento da ADIN 1.127-8, o Supremo declarou a inconstitucionalidade da expressão ‘assim reconhecidas pela OAB’).

Perceba-se que, em relação ao advogado, a ausência de sala de Estado-Maior implica no seu recolhimento domiciliar[4], benefício este com o qual não foram contemplados os membros da magistratura, do Ministério Público e da Defensoria Pública.

De acordo com o entendimento pretoriano, “(...) aos profissionais da advocacia é assegurada a prerrogativa de confinamento em Sala de Estado-Maior, até o trânsito em julgado de eventual sentença condenatória. Prerrogativa, essa, que não se reduz à prisão especial de que trata o art. 295 do Código de Processo Penal. A prerrogativa de prisão em Sala de Estado-Maior tem o escopo de mais garantidamente preservar a incolumidade física daqueles que, diuturnamente, se expõem à ira e retaliações de pessoas eventualmente contrariadas com um labor advocatício em defesa de contrapartes processuais e da própria Ordem Jurídica. A advocacia exibe uma dimensão coorporativa, é certo, mas sem prejuízo do seu compromisso institucional, que já é um compromisso com os valores que permeiam todo o Ordenamento Jurídico brasileiro. A Sala de Estado-Maior se define por sua qualidade mesma de sala e não de cela ou cadeia. Sala, essa, instalada no Comando das Forças Armadas ou de outras instituições militares (Polícia Militar, Corpo de Bombeiros) e que em si mesma constitui tipo heterodoxo de prisão, porque destituída de portas ou janelas com essa específica finalidade de encarceramento. Ordem parcialmente concedida para determinar que o Juízo processante providencie a transferência do paciente para sala de uma das unidades militares do Estado de São Paulo, a ser designada pelo Secretário de Segurança Pública”.[5]

Quanto aos jornalistas, dispunha o art. 66 da Lei n. 5.250/67 (Lei de Imprensa) que o jornalista profissional não poderia ser detido nem recolhido preso antes de sentença transitada em julgado; em qualquer caso, somente em sala decente, arejada e onde encontre todas as comodidades. A pena de prisão de jornalistas, por sua vez, deve ser cumprida em estabelecimento distinto dos que são destinados a réus de crime comum e sem sujeição a qualquer regime penitenciário ou carcerário.

Ocorre que o Supremo Tribunal Federal, no julgamento da argüição de descumprimento de preceito fundamental n. 130, julgou procedente o pedido ali formulado para o efeito de declarar como não-recepcionado pela Constituição Federal todo o conjunto de dispositivos da Lei 5.250/67.

Destarte, jornalistas deixaram de ter direito à sala de Estado-Maior, subsistindo, todavia, o direito à prisão especial, caso o jornalista seja diplomado por qualquer das faculdades superiores da República (CPP, art. 295, VII).[6]

[1] STF – Rcl 4.535/ES – Tribunal Pleno – Rel. Min. Sepúlveda Pertence – DJ 15/06/2007 p. 21.
[2] “(...) A jurisprudência do Supremo Tribunal Federal consolidou o entendimento segundo o qual o réu que ostente status profissional de advogado tem direito público subjetivo à prisão especial até o trânsito em julgado da condenação. Precedentes: PET - MC nº 166/SP, Rel. Min. Carlos Madeira, 2ª Turma, unânime, DJ 2.5.1986; HC nº 72.465/SP, Rel. Min. Celso de Mello, 1ª Turma, unânime, DJ 5.9.1995; HC nº 81.632/SP, Rel. Min. Carlos Velloso, 2ª Turma, maioria, DJ 21.3.2003; e HC nº 88.702/SP, Rel. Min. Celso de Mello, 2ª Turma, unânime, DJ 24.11.2006. O juízo de origem, em nenhum momento, criou dificuldades à efetivação do direito da paciente à prisão especial. A decisão agravada ateve-se às circunstâncias do caso e apontou que o direito à prisão especial cessa com o trânsito em julgado da condenação penal. Diante da confirmação do trânsito em julgado da ação penal perante as instâncias ordinárias, recurso de agravo desprovido”. (STF – HC-AgR 82.850/SP – 2ª Turma – Rel. Min. Gilmar Mendes – DJ 28/09/2007 p. 65).
[3] “(...)      Embora os funcionários da Administração Criminal possuam direito à prisão especial mesmo após o trânsito em julgado da condenação, a execução de suas penas dar-se-á em estabelecimento penal sujeito ao mesmo sistema disciplinar e carcerário de outros presos com o mesmo regime prisional, em dependência isolada dos demais reclusos, a teor do disposto no § 2º do art. 2º do art. 84 da Lei nº 7.210/84”. (STJ – REsp 744.857/RN – 5ª Turma – Relatora Ministra Laurita Vaz – DJ 06/02/2006 p. 304).
[4] “(...) A jurisprudência firmada pelo Plenário e pelas duas Turmas desta Corte é no sentido de se garantir a prisão cautelar aos profissionais da advocacia, devidamente inscritos na Ordem dos Advogados do Brasil, em sala de Estado-Maior, nos termos do art. 7º, inc. V, da Lei nº 8.906/94 (Estatuto da Advocacia), e, não sendo possível ou não existindo dependências definidas como tal, conceder a eles o direito de prisão domiciliar”.  (STF – HC 91.150/SP – 1ª Turma – Rel. Min. Menezes Direito – DJ 31/10/2007 p. 91).
[5] STF – HC 91.089/SP – 1ª Turma – Rel. Min. Carlos Britto – DJ 19/10/2007 p. 46. Na mesma linha: STF – Rcl 4.713/SC – Tribunal Pleno – Rel. Min. Ricardo Lewandowski – DJE 041 – 07/03/08).
[6] Vale lembrar que, segundo decisão do Supremo Tribunal Federal, “(...) a exigência de diploma de curso superior para a prática do jornalismo - o qual, em sua essência, é o desenvolvimento profissional das liberdades de expressão e de informação - não está autorizada pela ordem constitucional, pois constitui uma restrição, um impedimento, uma verdadeira supressão do pleno, incondicionado e efetivo exercício da liberdade jornalística, expressamente proibido pelo art. 220, § 1º, da Constituição. (..) No campo da profissão de jornalista, não há espaço para a regulação estatal quanto às qualificações profissionais. O art. 5º, incisos IV, IX, XIV, e o art. 220, não autorizam o controle, por parte do Estado, quanto ao acesso e exercício da profissão de jornalista. Qualquer tipo de controle desse tipo, que interfira na liberdade profissional no momento do próprio acesso à atividade jornalística, configura, ao fim e ao cabo, controle prévio que, em verdade, caracteriza censura prévia das liberdades de expressão e de informação, expressamente vedada pelo art. 5º, inciso IX, da Constituição. A impossibilidade do estabelecimento de controles estatais sobre a profissão jornalística leva à conclusão de que não pode o Estado criar uma ordem ou um conselho profissional (autarquia) para a fiscalização desse tipo de profissão. O exercício do poder de polícia do Estado é vedado nesse campo em que imperam as liberdades de expressão e de informação. (...)”. (STF – RE 511.961/SP – Tribunal Pleno – Rel. Min. Gilmar Mendes – Dje 213 – 12/11/2009).

Vídeo: Direitos da personalidade do morto. Livro "Lampião - O mata sete"


Direitos da personalidade do morto. Livro "Lampião - O mata sete". O prof. Flavio Tartuce analisa a proibição do livro o juíz de Sergipe.

sexta-feira, 9 de dezembro de 2011

Artigo: Respeito à integridade moral do preso e sua indevida exposição à mídia.



 por Renato Brasileiro

De acordo com o art. 5º, inciso XLIX, da Constituição Federal, “é assegurado aos presos o respeito à integridade física e moral”. Ao proclamar o respeito à integridade física e moral dos presos, a Carta Magna garante ao preso a conservação de todos os direitos fundamentais reconhecidos à pessoa livre, à exceção, é claro, daqueles que sejam incompatíveis com a condição peculiar de uma pessoa presa, tais como a liberdade de locomoção (CF, art. 5º, XV), o livre exercício de qualquer profissão (CF, art. 5º, XIII), a inviolabilidade domiciliar em relação à cela (CF, art. 5º, XI) e o exercício dos direitos políticos (CF, art. 15, III). Não obstante, mantém o preso os demais diretos e garantias fundamentais, tais como o respeito à integridade física e moral (CF, art. 5º, III, V, X e LXIV), à liberdade religiosa (CF, art. 5º, VI), ao direito de propriedade (CF, art. 5º, XXII), e, em especial, aos direitos à vida e à dignidade humana.[1]
           
De modo semelhante, o Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos prevê em seu art. 10 que toda pessoa privada de sua liberdade deverá ser tratada com humanidade e respeito à dignidade inerente à pessoa humana, dispondo que “as pessoas processadas deverão ser separadas, salvo em circunstâncias excepcionais, das pessoas condenadas e receber tratamento distinto, condizente com sua condição de pessoas não condenadas; e, as pessoas jovens processadas deverão ser separadas das adultas e julgadas o mais rápido possível”. Na mesma linha, o Pacto de São José da Costa Rica consagra regras protetivas aos direitos dos reclusos, determinando em seu art. 5º que os processados devem ficar separados dos condenados, salvo em circunstâncias excepcionais, e devem ser submetidos a tratamento adequado a sua condição de pessoas não condenadas.

A questão relativa ao respeito à integridade moral do preso ganha importância quando se verifica a crescente importância dada pela mídia às mazelas do processo penal. Com efeito, hoje em dia, não são raras as prisões cautelares acompanhadas ao vivo pela imprensa que, coincidentemente, sempre está presente no lugar e hora marcados para registrar tudo. Tais imagens, depois, são exploradas à exaustão nos telejornais pelos doutrinadores do direito penal e processual penal, o que sempre é feito a título de informar a população. Sob os holofotes da mídia, é colocada em segundo plano a finalidade de toda e qualquer prisão cautelar, qual seja, a de assegurar a eficácia das investigações ou do processo penal. Passam as prisões cautelares, outrossim, a desempenhar um efeito sedante da opinião pública pela ilusão de justiça instantânea,[2] exercendo uma função absolutamente incoerente e proscrita para um instrumento legitimado por sua feição cautelar.

Não olvidamos a importância da liberdade de expressão, compreendida como a possibilidade de difundir livremente os pensamentos, idéias e opiniões, mediante a palavra escrita ou qualquer outro meio de reprodução. No entanto, se aos órgãos de informação é assegurada a maior liberdade possível em sua atuação, também se lhes impõe o dever de não violar princípios basilares do processo penal, substituindo o devido processo legal previsto na Constituição por um julgamento sem processo, paralelo e informal, mediante os meios de comunicação.
Oportuna, nesse sentido, a transcrição das palavras do Min. Marco Aurélio: “(...) Ninguém desconhece a necessidade de adoção de rigor no campo da definição de responsabilidade, mormente quando em jogo interesses públicos da maior envergadura. No levantamento de dados, no acompanhamento dos fatos, no esclarecimento da população, importante é o papel exercido pela imprensa. Todavia, há de se fazer presente advertência de Joaquim Falcão, veiculada sob o título A imprensa e a justiça, no Jornal O Globo, de 06.06.93: `Ser o que não se é, é errado. Imprensa não é justiça. Esta relação é um remendo. Um desvio institucional. Jornal não é fórum. Repórter não é juiz. Nem editor é desembargador. E quando, por acaso, acreditam ser, transformam a dignidade da informação na arrogância da autoridade que não têm. Não raramente, hoje, alguns jornais, ao divulgarem a denúncia alheia, acusam sem apurar. Processam sem ouvir. Colocam o réu, sem defesa, na prisão da opinião pública. Enfim, condenam sem julgar´. Exige-se do Judiciário a equidistância, a atuação desapaixonada, buscando, assim, o restabelecimento da paz jurídica momentaneamente abalada. O instituto da prisão preventiva coloca-se no campo da absoluta excepcionalidade. O certo, o constitucional é aguardar-se a formação da culpa após haver o acusado exercido, em toda a plenitude, o direito de defesa. Pedagógica é a Carta da República ao revelar algo que decorre, até mesmo, do princípio da razoabilidade, da presunção do que normalmente se verifica, da impossibilidade de inverter-se a ordem natural das coisas, assentando-se conclusão somente passível de ser alcançada ao término da instrução penal, após desincumbir-se o Ministério Público do ônus processual de comprovar, de forma robusta, a culpa do acusado. Impossível é esquecer que ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença condenatória (inc. LXVII do art. 5º da CF).”[3]

Especificamente em relação à divulgação da imagem de pessoas presas, o que se vê no dia-a-dia é uma crescente degradação da imagem e da honra produzida pelos meios de comunicação de massa, que reproduzem a imagem do preso sem que haja prévia autorização do preso, nem tampouco um fim social na sua exibição. Utilizam sua imagem, pois, como produto da notícia, a fim de saciar a curiosidade do povo. Como esclarece Eugênio Bucci, “os programas sensacionalistas do rádio e os programas policiais de fim de tarde em televisão saciam curiosidades perversas e até mórbidas tirando sua matéria-prima do drama de cidadãos humildes que aparecem nas delegacias como suspeitos de pequenos crimes. Ali, são entrevistados por intimidação. As câmeras invadem barracos e cortiços, e gravam sem pedir licença a estupefação de famílias de baixíssima renda que não sabem direito o que se passa: um parente é suspeito de estupro, ou o vizinho acaba de ser preso por tráfico, ou o primo morreu no massacre do fim de semana no bar da esquina. A polícia chega atirando; a mídia chega filmando. (...) Como vivem à margem dos direitos, essas pessoas não têm reconhecido o seu direito à privacidade; sua intimidade não existe – ou não vale nada”.[4]

Queremos crer, portanto, e seguindo a lição de Ana Lúcia Menezes Vieira,[5] que a reprodução pública da imagem de pessoas envolvidas em crimes deve ser vedada se ela resulta de modo anti-social, aflitivo ou degradante, a não ser que haja autorização do titular da imagem, ou se necessária à administração da justiça – exemplo seria o retrato falado ou a própria fotografia, para fins investigativos.

Ora, como dito acima, a condição de cidadão preso não lhe retira o direito ao respeito à integridade moral e à dignidade[6]. Seus direitos personalíssimos devem ser tutelados de forma mais eficaz, não só por jornalistas, como também por autoridades policiais e membros do Ministério Público, que devem se abster de exibir presos à mídia. E isso não só para preservar os direitos personalíssimos do preso, como também para evitar que inocentes sejam identificados indevidamente como autores de delitos.

Infelizmente, não são poucos os exemplos de pessoas que são exibidas à mídia como suspeitas da prática de delitos, mas cuja inocência é posteriormente reconhecida. Além do célebre episódio da “Escola Base”[7], e do denominado crime do Bar Bodega[8], em um caso ocorrido em novembro de 2006, no bairro de Perdizes, localizado na cidade de São Paulo, relativo a um casal de idosos que foi encontrado morto a facadas dentro de sua residência, a Polícia apressou-se em apontar o filho do casal como suspeito de ter praticado o duplo homicídio, já que não foram encontrados inicialmente sinais de arrombamento nem de sangue na residência. Como conseqüência do açodamento da Polícia, e da imediata divulgação pela imprensa que induziram uma pré-convicção de culpa do filho do casal, a casa em que residia a família foi pichada com a palavra assassino, em referência ao filho do casal, que também passou a ser hostilizado pelos moradores do bairro. Posteriormente, no entanto, a mesma Polícia encontrou manchas de sangue na casa ao lado, além de pegadas na parte de dentro da residência onde ocorreu o crime até o muro, confirmando uma rota de fuga usada pelo verdadeiro autor do delito. Dois dias depois, o criminoso apresentou-se à Polícia, sendo com ele apreendida a faca utilizada no crime. Difícil expressar o prejuízo causado ao filho do casal: além de perder seus pais, em um crime bárbaro e cruel, foi apontado pelas autoridades policiais como suposto autor do delito, sendo, então, submetido ao tradicional linchamento midiático, e transformado, aos olhos da população, em culpado. Por mais que a mídia se apressasse depois em desfazer o equívoco, já era tarde demais: a violência já estava consumada.
Apesar de a legislação brasileira não possuir normas infraconstitucionais regulamentando a publicidade mediata das investigações e dos atos judiciais, a fim de preservar os direitos personalíssimos do preso (CF, art. 5º, incisos X e XLIX), é possível encontrar alguma normatização do assunto através de Portarias e Regulamentos dos próprios órgãos policiais.

A título de exemplo, dispõe o art. 11 da Portaria nº 18 da Delegacia Geral de Polícia do Estado de São Paulo[9]: “As autoridades policiais e demais servidores zelarão pela preservação dos direitos à imagem, ao nome, à privacidade e à intimidade das pessoas submetidas à investigação policial, detidas em razão da prática de infração penal ou a sua disposição na condição de vítimas, em especial enquanto se encontrarem no recinto de repartições policiais, a fim de que a elas e a seus familiares não sejam causados prejuízos irreparáveis, decorrentes da exposição de imagem ou de divulgação liminar de circunstância objeto de apuração. Parágrafo único. As pessoas referidas nesse artigo, após orientadas sobre seus direitos constitucionais, somente serão fotografadas, entrevistadas ou terão suas imagens por qualquer meio registradas, se expressamente o consentirem mediante manifestação explícita de vontade, por escrito ou por termo devidamente assinado, observando-se ainda as correlatas normas editadas pelos Juízos Corregedores da Polícia Judiciária das Comarcas”. Oxalá seja a referida portaria observada no dia-a-dia de delegacias e fóruns criminais.


[1] MORAES, Alexandre de. Constituição do Brasil: interpretada e legislação constitucional. 5ª ed. São Paulo: Atlas, 2005. 338.
[2]  LOPES JR. Aury; BADARÓ, Gustavo Henrique. Direito ao Processo Penal no prazo razoável. Rio de Janeiro. Editora Lumen Juris: 2006. p. 55.
[3] STF – HC – Liminar – Rel. Marco Aurélio – j. 14.06.2000 – Revista Síntese 3/141.
[4] BUCCI, Eugênio. Sobre ética e imprensa. São Paulo: Companhia das Letras, 2000. 156. Apud VIEIRA, Ana Lúcia Menezes. Processo penal e mídia. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2003. p. 156.
[5] VIEIRA, Ana Lúcia Menezes. Processo penal e mídia. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2003. p. 153.
[6] SUANNES, Adauto. Os fundamentos éticos do devido processo penal. 2ª ed. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2004. p. 181.
[7] Trata-se de um dos mais emblemáticos casos de assassinato moral de inocentes, na dicção de Ana Lúcia Menezes Vieira. Os responsáveis pela referida escola foram dados pela mídia como autores de abusos sexuais contra crianças de classe média. A escola foi alvo de depredação, seus proprietários tiveram que abandonar os empregos, e também não podiam sair às ruas, porque corriam o risco de sofrer agressões em público, na medida em que a imprensa divulgava suas fotos. O inquérito policial, no entanto, acabou sendo arquivado por falta de elementos de informação que evidenciassem a prática dos crimes sexuais.
[8] “O denominado crime do bar Bodega, ocorrido no dia 10 de agosto de 1996, no interior de uma choperia localizada em Moema, bairro nobre da cidade de São Paulo, no qual dois jovens da classe média paulistana morreram, de forma brutal e desnecessária, comoveu a opinião pública do Estado. Pressionada, 15 dias após o evento criminoso, a polícia apresentou aqueles que seriam os responsáveis pela morte das vítimas: cinco jovens negros e pobres, moradores da periferia da região da Grande São Paulo. Expostos à imprensa como animais bravios, algemados e com placas dependuradas em seus corpos, indicando números, foram fotografados, filmados e entrevistados por dezenas de repórteres de rádio, tevês, jornais e revistas. No final do mês passado, entretanto, foram colocados em liberdade, pois o Ministério Público não encontrou suficiência de elementos de prova nos autos, no sentido de indicar suas participações no crime e identificou sérios indícios de que teriam confessado o delito sob os mais cruéis métodos de tortura. Parte da imprensa, então, deu-se conta de que, mais uma vez, a exemplo do ocorrido recentemente no chamado crime da Escola Base, embarcou em notícia de uma investigação infeliz da polícia, que, salvo novas evidências em contrário, inicialmente identificou inocentes como os verdadeiros autores do duplo latrocínio. (...)”. (SILVA, Eduardo Araújo. O papel da imprensa no caso do Bar Bodega. Isto é, 4 dez. 1996, p. 151. Apud VIEIRA, Ana Lúcia Menezes. Processo penal e mídia. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2003. p. 169). 
[9] Publicada no DOE de 27 de novembro de 1998.

quarta-feira, 30 de novembro de 2011

Vídeo: Prova Final - Conexão e Continência no Processo Penal.

Programa Prova Final (TV Justiça). Nesse programa o professor Flávio Martins aborda o tema Conexão e Continência no Processo Penal. O programa tem duração de aproximadamente 55 minutos e está dividido em três blocos. O primeiro bloco, demonimado Tema do Dia, o professor faz uma exposição do tema abordado; o segundo bloco é o Pergunte ao Professor, no qual são respondidas perguntas de alunos; o terceiro bloco é o X da questão, que responde e analisa duas questões que já caíram no Exame da Ordem dos Advogados do Brasil.


Artigo: PRISÃO ESPECIAL.


por Renato Brasileiro


Resultado do reconhecimento explícito da péssima situação carcerária vivenciada no Brasil[1], e da própria seletividade do sistema penal, o legislador brasileiro[2] resolveu conferir a certos indivíduos o direito à prisão especial, pelo menos até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória.[3]
Cria-se por meio da prisão especial tratamento diferenciado entre um cidadão diplomado e outro analfabeto[4] (CPP, art. 295, inciso VII), violando-se o princípio da isonomia sem qualquer critério lógico e razoável a justificá-lo. Na verdade, se o próprio Estado reconhece que não consegue fornecer condições carcerárias dignas, deveria reservar a todo e qualquer preso provisório, primário e com bons antecedentes, recolhimento em separado daqueles que foram condenados, e, por conseguinte, já possuem mais tempo de vivência no cárcere.
Nesse diapasão, segundo Renato Stanziola Vieira, “nenhum cidadão pode pagar com sua dignidade o preço da carência estatal enquanto está custodiado, às custas e sob responsabilidade do Estado. Há um dever estatal ético e legal de garantir a integridade e a dignidade do imputado, seja ele qual for, enquanto não há o acertamento do fato com a eventual cogitação de responsabilidade criminal contra  a qual não caiba mais recurso. Esse postulado não admite distinções, pois o Estado não pode se preocupar, assumida a responsabilidade de ter um cidadão custodiado, só com os que são especiais e descurar-se dos tantos outros, comuns. Todos são, neste particular, especiais; e todos são, ao mesmo tempo, igualmente comuns”.[5]
Uma ressalva importante deve ser feita unicamente àqueles que, em virtude da função exercida antes de serem presos, possam ter sua integridade física e moral ameaçadas quando colocados em convivência com outros presos, tais como juízes, membros do Ministério Público, policiais, defensores, funcionários da Justiça, etc. A eles, sim, deve-se reservar o direito à prisão especial (vide art. 84, §2º, da Lei de Execução Penal). Nesse caso, há uma razão razoável para o tratamento diferenciado.[6] Afinal, essas pessoas ‘desiguais’ merecem um tratamento especial, na medida em que se desigualam das demais. Mantê-las presas em celas comuns equivaleria a instituir, do ponto de vista prático, verdadeira pena de morte.
A prisão especial não pode ser considerada modalidade de prisão cautelar. Cuida-se, na verdade, de especial forma de cumprimento da prisão cautelar. Com efeito, segundo o disposto no art. 295 do CPP, só há falar em direito à prisão especial quando o agente estiver sujeito à prisão antes de condenação definitiva. Logo, com o trânsito em julgado, cessa o direito à prisão especial, sendo o condenado submetido ao regime ordinário de cumprimento da pena, ressalvada a hipótese do art. 84, §2º, da LEP, referente ao preso que, ao tempo do fato, era funcionário da administração criminal, o qual deverá ficar em dependência separada dos demais presos.
Tamanhos eram os benefícios aos presos especiais que a Lei n. 5.256, que entrou em vigor no dia 7 de abril de 1967, determinava em seu art. 1º que, nas localidades em que não houvesse estabelecimento adequado ao recolhimento dos que tenham direito a prisão especial, o juiz, considerando a gravidade das circunstâncias do crime, ouvido o representante do Ministério Público, poderia autorizar a prisão do réu ou indiciado na própria residência, de onde o mesmo não poderia afastar-se sem prévio consentimento judicial. Somente a violação da obrigação de comparecer aos atos policiais ou judiciais para os quais fosse convocado é que poderia implicar na perda do benefício da prisão domiciliar, devendo o indivíduo ser recolhido a estabelecimento penal, onde permanecesse separado dos demais presos.
            Ocorre que, com a entrada em vigor da Lei n. 10.258/01, esse panorama foi alterado. Isso porque, de acordo com os §§ 1º e 2º do art. 295, acrescentados pela referida lei, a prisão especial consiste exclusivamente no recolhimento em local distinto da prisão comum, e, não havendo estabelecimento específico para o preso especial, este será recolhido em cela distinta do mesmo estabelecimento. Na verdade, o que hoje ocorre é o recolhimento do preso especial a um determinado distrito policial, especificamente destinado a abrigar presos dessa espécie. A inexistência desse local distinto, todavia, não implica em imediata prisão domiciliar, como dispunha o art. 1º da Lei n. 5.256/67. Nesse caso, o preso deverá ser colocado no mesmo estabelecimento prisional que os demais presos, porém em cela distinta.
Destarte, com a entrada em vigor da Lei n. 10.258/01, somente na hipótese de inexistência de cela distinta para preso especial é que poderá ocorrer a prisão domiciliar. Nessa última hipótese, por ato de ofício do juiz, a requerimento do MP ou da autoridade policial, o beneficiário da prisão domiciliar poderá ser submetido à vigilância policial, exercida sempre com discrição e sem constrangimento para o réu ou indiciado e sua família (Lei n. 5.256/67, art. 3º). Ademais, a violação de qualquer das condições impostas na conformidade da Lei n. 5.256/67 implicará na perda do benefício da prisão domiciliar, devendo o réu ou indiciado ser recolhido a estabelecimento penal, onde permanecerá separado dos demais presos.
            A prisão especial pode consistir em alojamento coletivo[7], atendidos os requisitos de salubridade do ambiente, pela concorrência dos fatores de aeração, insolação e condicionamento térmico adequados à existência humana (CPP, art. 295, §3º). Cumpre lembrar que esse respeito à dignidade do preso não é exclusividade do preso especial. Pelo menos de acordo com o que consta do texto da Lei de Execução Penal (art. 88, parágrafo único, da Lei n. 7.210/84), são requisitos básicos da unidade celular em penitenciária a salubridade do ambiente pela concorrência dos fatores de aeração, insolação e condicionamento térmico adequado à existência humana, além de uma área mínima de 6 m2 (seis metros quadrados).
            Mesmo estando recolhido a prisão especial, o preso tem direito à progressão de regimes. É esse o teor da súmula 717 do Supremo Tribunal Federal: “Não impede a progressão de regime de execução da pena, fixada em sentença não transitada em julgado, o fato de o réu se encontrar em prisão especial”. Para tanto, deve o preso preencher os requisitos estipulados no art. 112 da Lei de Execução Penal: a) cumprimento de 1/6 da pena no regime anterior; b) bom comportamento carcerário comprovado pelo diretor do estabelecimento. Vale ressaltar que o art. 2º, §2º, da Lei n. 8.072/90, com redação determinada pela Lei n. 11.464/07, trouxe novo requisito temporal para o direito à progressão por condenado por crimes hediondos, prática da tortura, tráfico ilícito de entorpecentes e terrorismo: 2/5 (dois quintos) da pena, se primário, e 3/5 (três quintos), se reincidente. No entanto, tratando-se de novatio legis in pejus, forçoso é concluir que esse requisito temporal somente se aplica aos crimes hediondos e equiparados cometidos após a entrada em vigor da Lei n. 11.464/07 (29 de março de 2007), sob pena de evidente violação ao princípio da irretroatividade da lei penal mais gravosa (CF, art. 5º, XL).[8]
            O art. 295 traz um rol exemplificativo dos cidadãos com direito à prisão especial:
 I - os ministros de Estado;
II - os governadores ou interventores de Estados ou Territórios, o prefeito do Distrito Federal, seus respectivos secretários, os prefeitos municipais, os vereadores e os chefes de Polícia - a figura do interventor está prevista no art. 36, §1º da Constituição Federal, segundo o qual “o decreto de intervenção, que especificará a amplitude, o prazo e as condições de execução e que, se couber, nomeará o interventor, será submetido à apreciação do Congresso Nacional ou da Assembléia Legislativa do Estado, no prazo de vinte e quatro horas”. Não há mais “Prefeito do Distrito Federal”, e sim Governador. Tampouco “secretários do Prefeito do Distrito Federal”, e sim do Governador. Por chefe de Polícia compreende-se o Secretário de Segurança Pública ou o Delegado Geral de Polícia. Independentemente da posição a ser adotada, ambos já estariam abrangidos pelo inciso II (‘respectivos secretários’) ou pelo inciso XI (‘delegados de polícia’), respectivamente. 
        III - os membros do Parlamento Nacional[9], do Conselho de Economia Nacional e das Assembléias Legislativas dos Estados – membros do Parlamento Nacional são os deputados e senadores, valendo ressaltar que o Conselho de Economia Nacional foi extinto.
        IV - os cidadãos inscritos no "Livro de Mérito"- o livro de mérito foi criado pelo Decreto-lei 1.706/39, com o objetivo de receber a inscrição dos nomes das pessoas que, por doações valiosas ou pela prestação desinteressada de serviços relevantes, hajam notoriamente cooperado para o enriquecimento do patrimônio material ou espiritual da Nação e merecido o testemunho público do seu reconhecimento. A inscrição será ordenada por decreto, mediante parecer de uma comissão permanente de 5 (cinco) membros, nomeados pelo Presidente da República.
        V – os oficiais das Forças Armadas[10] e os militares dos Estados, do Distrito Federal e dos Territórios[11]. Assim, a contrario sensu, aos militares que não forem oficiais aplica-se a regra do art. 296, devendo ser custodiados em estabelecimentos militares[12]. Por sua vez, de acordo com o parágrafo único do art. 242 do Código de Processo Penal Militar, a prisão de praças especiais e a de graduados atenderá aos respectivos graus de hierarquia.
        VI - os magistrados[13];
        VII - os diplomados por qualquer das faculdades superiores da República;
        VIII - os ministros de confissão religiosa;
        IX - os ministros do Tribunal de Contas;
        X - os cidadãos que já tiverem exercido efetivamente a função de jurado, salvo quando excluídos da lista por motivo de incapacidade para o exercício daquela função. Diverge a doutrina quanto ao significado da expressão ‘efetivamente exercido a função de jurado’ para que o jurado faça jus à prisão especial (CPP, art. 439, caput). Para Fernando da Costa Tourinho Filho[14], ‘o exercício efetivo da função de jurado’ significa participar de um julgamento, compondo o conselho de julgamento.[15] Por outro lado, Mirabete[16] compreende por efetivo exercício da função de jurado o comparecimento do jurado ao dia da sessão, ainda que não seja sorteado para compor o conselho de sentença, diante do que preceitua o próprio art. 447 do CPP, que, localizado na Seção IX (“Da composição do Tribunal do Júri e da Formação do Conselho de Sentença”) do Capítulo que versa sobre o procedimento do júri, dispõe que o Tribunal do Júri é composto por 1 (um) juiz togado, seu presidente e por 25 (vinte e cinco) jurados que serão sorteados dentre os alistados, 7 (sete) dos quais constituirão o Conselho de Sentença em cada sessão de julgamento. Independente da posição doutrinária, vale ressaltar que tal benefício será válido não apenas para a comarca onde o cidadão tiver exercido a função de jurado, como também para outras comarcas, ainda que localizadas em distinto Estado da Federação.  
            XI - os delegados de polícia e os guardas-civis dos Estados e Territórios, ativos e inativos.
            Além dessas hipóteses, leis especiais também contemplam outros cidadãos com o benefício da prisão especial: 1) Lei n. 2.860/56 – dirigentes de entidades sindicais de todos os graus e representativas de empregados, empregadores, profissionais liberais, agentes e trabalhadores autônomos; 2) Lei n. 3.313/57 – servidores do departamento federal de segurança pública com exercício de atividade estritamente policial; 3) Lei n. 3.988/61 - pilotos de aeronaves mercantes nacionais[17]; 4) Lei n. 4.878/65 – policiais civis da União e do Distrito Federal; 5) Lei n. 5.350/67 – funcionário da polícia civil dos Estados e Territórios; 6) Lei n. 5.606/70 – oficiais da marinha mercante; 7) Lei n. 7.102/83 – vigilantes e transportadores de valores; 8) Lei n. 7.172/83 – professores de 1º e 2º graus; 9) Lei n. 8.069/90 – conselheiro tutelar. Pelo art. 15 da Lei n. 9.807/99, serão aplicadas em benefício do colaborador, na prisão ou fora dela, medidas especiais de segurança e proteção a sua integridade física, considerando ameaça ou coação eventual ou efetiva. Estando o colaborador sob prisão temporária, preventiva ou decorrência de flagrante delito, o colaborador será custodiado em dependência separada dos demais presos.
            Por fim, convém ressaltar que a Lei n. 9.807/99, que estabeleceu normas para a organização e a manutenção de programas especiais de proteção a vítimas e a testemunhas ameaçadas, também instituindo o Programa Federal de Assistência a Vítimas e Testemunhas Ameaçadas, além de dispor sobre a proteção de acusados ou condenados que tenham voluntariamente prestado efetiva colaboração à investigação policial e ao processo criminal, prevê que serão aplicadas em benefício do colaborador, na prisão ou fora dela, medidas especiais de segurança e proteção a sua integridade física, considerando ameaça ou coação eventual e efetiva. Dentre tais medidas, estando sob prisão temporária, preventiva ou em decorrência de flagrante delito, o colaborador será custodiado em dependência separada dos demais presos (Lei n. 9.807/99, art. 15, §1º).

[1] “A prisão não intimida nem regenera. Embrutece e perverte. Insensibiliza ou revolta. Descaracteriza e desambienta. Priva de funções. Inverte a natureza. Gera cínicos e hipócritas. A prisão, fábrica e escola de reincidência, habitualidade e profissionalidade, produz e reproduz criminosos”. (LYRA, Roberto. Novo Direito Penal. Rio de Janeiro, Freitas Bastos, 1971, v. 3, p. 109).
[2] Segundo Luiz Flávio Gomes, não se conhece outro país que tenha hoje instituto parecido com a prisão especial. (Prisão especial sem regalias. Enfoque jurídico. 15ª ed.. Publicação do TRF 1ª Região, ago. 2001, p. 3).
[3] Não se deve confundir o direito à prisão especial com a separação dos presos provisórios dos que já estiverem definitivamente condenados, prevista no art. 300 do CPP. Segundo o referido dispositivo, sempre que possível, as pessoas presas provisoriamente ficarão separadas das que já estiverem definitivamente condenadas. Esse dispositivo visa evitar a promiscuidade resultante da convivência entre presos provisórios e presos que já tenham contra si sentença condenatória com trânsito em julgado. No mesmo sentido é a redação do art. 84, caput, da Lei de Execução Penal, segundo o qual o preso provisório ficará separado do condenado por sentença transitada em julgado. Além dessa separação do preso provisório do preso condenado em definitivo, a LEP determina que o preso primário cumpra pena em seção distinta daquela reservada para os reincidentes (LEP, art. 84, §1º).
[4] A este respeito, é interessante observar a crítica emitida no voto do ministro do Superior Tribunal de Justiça, Luiz Vicente Cernicchiaro, no RHC 2.170-0/SP, de 20/10/1992: “Por fim, a prisão especial, teleologicamente significa direito da pessoa ficar distante da população carcerária. A realidade brasileira mostra que, mesmo em relação aos advogados, que têm o direito de permanecer em sala especial, de Estado-Maior, nem sempre isso pode acontecer. Desde que não seja imposto tratamento ao condenado, havendo local digno para o portador do diploma, o tratamento especial está respeitado. Não obstante, é extremamente odioso nós, magistrados, os ilustres advogados, enfim, quem seja portador de diploma de curso superior, receber tratamento diferente da pessoa humilde que não teve acesso às escolas sem oportunidade de se diplomar. Parece-me flagrantemente inconstitucional este tratamento que nos beneficia”.
[5] VIEIRA, Renato Stanziola. Prisão especial: cautelaridade e constitucionalidade. Revista Brasileira de Ciências Criminais. São Paulo, ano 17, n. 79, jul.-ago. 2009. p. 245-246.
[6] MELLO, Celso Antônio Bandeira de. Conteúdo jurídico do princípio da igualdade. 3ª ed. 8ª tir. São Paulo: Malheiros, 2000.
[7] “(...) Recolhido o paciente em cela distinta de estabelecimento de prisão comum, consistindo em alojamento coletivo para os internos que se encontram na mesma condição, ou seja, com direito à prisão especial, não há falar em constrangimento ilegal a ser sanado, uma vez que atendidos os requisitos do art. 295 do CPP. Ordem denegada”. (STJ – HC 56.160/RN – 5ª Turma – Rel. Min. Arnaldo Esteves Lima – DJ 07/05/2007 p. 339).
[8] STF – HC 91.631/SP – 1ª Turma – Relatora Ministra Cármen Lúcia – DJ 09/11/2007 p. 426.
[9]De acordo com o STF, o art. 295 do CPP comporta interpretação restritiva, não sendo possível estender o benefício excepcional da prisão especial por analogia, razão pela qual indeferiu pedido feito por súdito estrangeiro, submetido à prisão preventiva para extradição, no sentido de que lhe fosse concedido o direito à prisão especial garantido aos parlamentares nacionais, sob a alegação de ser membro de parlamento estrangeiro. (STF – Tribunal Pleno – PPE 315 AgR/AU – Rel. Min. Octavio Gallotti – DJ 06/04/01)
[10] “(...) – Prisão especial ou domiciliar. Militar da reserva não remunerada (R-2). Sendo a prisão especial uma exceção, deve ser sua aplicação interpretada restritivamente, para que o direito não se transforme em privilégio. Assim, quando o inciso V do art. 296 do CPP se refere aos oficiais das forças armadas, está se referindo aos militares da carreira, não os que, atendendo à convocação obrigatória, se preparam, em curto espaço, nos NPOR, ou CPOR, que compõem a reserva não remunerada (R-2). Também não há amparo para a prisão domiciliar. (...)”. (STJ – RHC 6.759/RS – 6ª Turma – Rel. Min. Anselmo Santiago – DJ 10/11/1997 p. 57.844). Nossa observação: o art. 296 foi citado de maneira incorreta, referindo-se o relator, na verdade, ao art. 295 do CPP.
[11] “(...) Enquanto não excluído da força pública, tem o policial militar condenado, ainda que por crime comum, o direito a ser mantido em prisão especial. "Habeas Corpus" conhecido; pedido deferido, para que o paciente permaneça recolhido ao Quartel onde se encontra, enquanto não excluído da força pública”. (STJ – HC 12.173/MG – 5ª Turma - Rel. Min. Edson Vidigal – DJ 12/06/2000 p. 122).
[12]             “(...)       Em hipóteses extremas e atento ao princípio constitucional que assegura a "integridade física e moral dos presos" (Constituição Federal, artigo 5º, inciso XLIX), razão não há para negar, ao praça reformado, a extensão do benefício da prisão especial disposto no artigo 296 da Lei Adjetiva Penal. Ordem concedida para, convolando em definitiva a medida liminar deferida, determinar que o paciente fique custodiado em estabelecimento militar até o trânsito em julgado de sua condenação”. (STJ – HC 17.718/GO – 6ª Turma – Rel. Min. Hamilton Carvalhido – DJ 06/05/2002 p. 320).
[13] Vide comentário abaixo sobre Sala de Estado-Maior.
[14] Código de Processo Penal Comentado- Arts. 1º a 393. 9ª ed. São Paulo: Saraiva, 2005. p. 704.
[15] STJ – RHC 2.674/MG – 5ª Turma – Rel. Min. Assis Toledo – DJ 24/05/1993 p. 10.011.
[16] Processo Penal. 18ª ed. rev. e atual. até 31 de dezembro de 2005 – São Paulo: Atlas, 2006. p. 525
[17] STJ – RHC 1.916/SP – 5ª Turma – Rel. Min. Cid Flaquer Scartezzini – DJ 08/06/92 p. 8.624.

terça-feira, 29 de novembro de 2011

Artigo: Intervenção de terceiros e a ação de alimentos.





por Daniel Neves

1. Introdução; 2. Breves considerações a respeito da denunciação da lide; 3. Breves considerações a respeito do chamamento ao processo; 4. A intervenção de terceiros prevista pelo art. 1698, CC; 5. Inadmissibilidade de se entender a intervenção do art. 1698 do Código Civil como denunciação à lide; 6. Inadmissibilidade de se entender a intervenção do art. 1698 do Código Civil como chamamento ao processo; 6.1. Natureza da obrigação alimentar entre os co-devedores; 6.2. A legitimação para convocar o terceiro ao processo; 6.3. Concordância do autor na formação do litisconsórcio ulterior; 7. Intervenções de terceiro atípicas criadas pelo Código de Processo Civil; 8. Conclusão.

1. Introdução
Segundo previsão do art. 1.698, CC, “Se o parente, que deve alimentos em primeiro lugar, não estiver em condições de suportar totalmente o encargo, serão chamados a concorrer os de grau imediato; sendo várias as pessoas obrigadas a prestar alimentos, todas devem concorrer na proporção dos respectivos recursos, e, intentada ação contra uma delas, poderão as demais ser chamadas a integrar a lide”.
Como se nota da literalidade do dispositivo legal, criou-se expressamente a possibilidade de uma espécie de intervenção de terceiros no processo de alimentos, passando a doutrina ao debate a respeito de sua natureza jurídica. Apesar de existirem doutrinadores a defender a natureza de denunciação da lide[1], a maior polêmica encontra-se entre aqueles que entendem tratar-se de espécie de chamamento ao processo e outros que defendem a criação de uma nova espécie de intervenção de terceiro pelo Código Civil.
A solução para tal questão não tem benefícios meramente acadêmicos, considerando-se que a definição da natureza jurídica de um instituto jurídico mostra-se essencial para sua melhor compreensão e, por conseqüência natural, para sua aplicação prática. A indicação da espécie de intervenção prevista pelo dispositivo legal ora comentado exige necessariamente uma breve análise da natureza jurídica da denunciação à lide, do chamamento ao processo e por fim das características do crédito alimentar. Somente após o enfrentamento dessas questões será possível apontar com maior segurança que espécie de intervenção de terceiro trata o art. 1698 do Código Civil.
2. Breves considerações a respeito da denunciação da lide
A denunciação da lide é espécie de intervenção de terceiro fundada no direito regressivo de uma das partes em face de terceiro. Tratando-se de intervenção de terceiro que tem natureza de ação, a denunciação da lide é uma verdadeira ação regressiva incidental promovida por uma das partes que, por meio dela, buscará a condenação do terceiro a repará-la por eventuais prejuízos advindos do processo no qual figura como autor ou réu[2].
Uma das principais características do instituto da denunciação da lide é que não existe qualquer relação jurídica entre o denunciado e a parte contrária ao denunciante, sendo que o direito material discutido na demanda judicial não lhe diz respeito, apenas o afetando de maneira secundária na eventual condenação da parte com a qual mantém o dever de regresso. Significa dizer que o denunciado à lide não é titular do direito material discutido no processo principal, o que inclusive impede que a demanda seja originariamente proposta por ou contra ele.

Essa é construção imprescindível para a compreensão dessa espécie de intervenção de terceiro, sendo inclusive a mais importante característica diferenciadora da denunciação da lide do chamamento ao processo[3].
Exatamente por essa razão que se mostra absolutamente equivocado o entendimento de que a parte contrária pode buscar a satisfação do direito reconhecido na demanda diretamente contra o denunciado, considerando-se que entre esses dois sujeitos não existe qualquer relação de direito material que legitime essa cobrança direta. O dever do denunciado, se devidamente condenado na ação regressiva incidental, será de ressarcir o denunciante dos prejuízos advindos do resultado da ação principal, e não assumir suas responsabilidades perante a parte contrária, com a qual, insista-se, não mantém qualquer relação jurídica de direito material[4].
E nem se argumente que a condenação direta do denunciado à lide estaria fundada na previsão do art. 75, I, CPC, que afirma que a relação entre denunciado e denunciante será litisconsorcial[5]. Não é esse o momento para o aprofundamento da questão referente à qualidade jurídica no processo do denunciado à lide, podendo-se apontar três correntes doutrinárias: (i) assistente simples; (ii) assistente litisconsorcial; (iii) litisconsorte. Ainda que se entenda que na ação principal o denunciado tem atuação processual de litisconsorte, acreditar que o dispositivo legal sob comento possa criar uma relação jurídica de direito material é absolutamente incorreto, porque as normas de direito processual se destinam a cuidar do procedimento e não a criar, modificar ou extinguir relações jurídicas, função exclusiva das normas de direito material[6].
Também não parece ser convincente o argumento de que a condenação direta do denunciado à lide favoreceria a qualidade da prestação jurisdicional, porquanto nas hipóteses nas quais o denunciante não tem condições de realizar o pagamento, a parte poderá se satisfazer diretamente do denunciado[7]. Apesar de inegáveis ganhos práticos nesse entendimento, não se pode jamais deixar de lado a circunstância de que entre a parte contrária e o denunciante não existe qualquer relação jurídica de direito material, de forma que a condenação direta é absolutamente indevida[8]. Entendimento contrário, inclusive, só poderia ser acolhido se aceito que o denunciado fosse colocado no pólo passivo da demanda desde o início, como réu, formando litisconsórcio com o efetivo responsável pelo ressarcimento dos prejuízos do autor. Mas seria parte legítima para figurar no pólo passivo esse sujeito? Certamente a resposta deve ser negativa.
Como conclusão do entendimento ora defendido, o denunciante somente poderá se voltar contra o denunciado após ter sofrido efetivamente prejuízo, o que somente ocorrerá quando satisfizer sua obrigação perante a parte contrária. Significa que poderá cobrar todos os valores despendidos em virtude da condenação na ação principal. O que deve ficar consignado é a possibilidade de quem satisfez a obrigação (denunciante) se voltar contra o sujeito que intervêm no processo (denunciado), buscando o ressarcimento de seu prejuízo. Esse aspecto da denunciação à lide será fundamental para afastá-la da intervenção de terceiros prevista pelo art. 1698 do Código Civil.

3. Breves considerações a respeito do chamamento ao processo
O chamamento ao processo é espécie de intervenção de terceiro ligada às dívidas solidárias, permitindo-se que o devedor demandado numa ação de cobrança possa chamar ao processo porventura outros devedores ou responsáveis patrimoniais pela satisfação da dívida. Dessa forma, trata-se de intervenção que traz ao processo devedores ou responsáveis patrimoniais – como é o caso do fiador, que não deve, mas responde com seus bens pela dívida – que poderiam ter desde o início feito parte do pólo passivo, em litisconsórcio, mas justamente pela natureza facultativa de tal litisconsórcio, dependente sua formação da vontade do autor, não foi formado originariamente.
De todas as hipóteses de cabimento previstas pelo art. 77 do Código de Processo Civil, verifica-se a imprescindível existência de solidariedade entre a parte e o terceiro. Para parcela doutrinária é justamente essa natureza de dívida solidária entre esses sujeitos perante a parte contrária que torna essa espécie de intervenção específica, considerando-se que, se não fosse esse elemento, as hipóteses legais de chamamento ao processo poderiam ser absorvidas como denunciação á lide, em especial em virtude da previsão do art. 70, III, Código de Processo Civil[9]. Somente não se pode defender o cabimento da denunciação à lide nessas hipóteses de dívida solidária porque há previsão legal expressa para o cabimento do chamamento ao processo.[10]
Nesse tocante, aliás, existe uma séria divergência doutrinária, que deve ser lembrada, ainda que sucintamente, porque as diferentes soluções adotadas serão de interesse para a conclusão buscada no presente artigo.
Para parcela da doutrina o chamamento ao processo tem a mesma natureza jurídica da denunciação á lide, considerando que o réu, ao chamar ao processo os terceiros, propõe contra eles uma ação regressiva incidental, exatamente como ocorre na denunciação à lide. A principal preocupação dessa parcela da doutrina é que ao entender-se que o chamamento ao processo seja um mero caso de litisconsórcio passivo ulterior formado por vontade do réu estar-se-ia revogando implicitamente os arts. 264 e 275 do Código Civil, que expressamente asseguram ao credor demandar contra apenas um dos co-devedores[11].
Outra corrente doutrinária entende que o chamamento ao processo não tem natureza jurídica de ação, se diferenciando nesse ponto da denunciação à lide. Afirma essa corrente que o chamamento ao processo é uma forma de intervenção por meio da qual o réu traz ao pólo passivo demais co-obrigados que não faziam originariamente parte do pólo passivo[12]. Dessa forma, não haverá no chamamento ao processo uma ampliação objetiva do processo, mas tão somente subjetiva, considerando-se que os terceiros co-devedores ingressam no processo como parte, em virtude do litisconsórcio facultativo ulterior formado pela vontade do co-devedor escolhido pelo credor para fazer parte do pólo passivo da demanda.
Como se nota, a questão essencial que divide a opinião da doutrina que já enfrentou o tema é justamente a conseqüência de entender-se o chamamento ao processo como uma maneira de formação de litisconsórcio passivo ulterior por vontade do réu com a regra de direito material que o autor pode escolher entre os devedores solidários contra quem pretende litigar pela totalidade da dívida. Seja como for, e nesse caso a doutrina parece caminhar de forma uníssona, ou como ação do réu contra os demais co-obrigados, ou como formação de litisconsórcio passivo ulterior, o autor não poderá se objetar ao chamamento ao processo realizado pelo réu, vendo-se obrigado a demandar contra os co-obrigados – seja na posição de partes ou de assistentes litisconsorciais – que não inclui no pólo passivo.
Outro ponto para o qual não surge qualquer dúvida no âmbito doutrinário, servindo também como elemento diferenciador da denunciação à lide, é a existência de uma relação de direito material entre o terceiro que é chamado ao processo e a parte contrária. É evidente que, tratando-se de devedores solidários, são todos titulares do direito material discutido no processo, de forma que sempre haverá entre todos os sujeitos – parte contrária – parte chamante e sujeito chamado – uma relação jurídica que os reúne.
Por fim, outro aspecto sobre o qual não paira qualquer dúvida diz respeito à legitimidade para o chamamento ao processo, numa outra característica que distingue o instituto da denunciação á lide. Somente o réu poderá chamar ao processo, sendo absolutamente inadmissível que o chamamento decorra de vontade do autor, que na realidade se pretendesse que todos os co-devedores fizessem parte do pólo passivo da demanda já teria formado o litisconsórcio de forma inicial.
4. A intervenção de terceiros prevista pelo art. 1698, CC.
O dispositivo legal regulamenta a participação no processo de devedores de alimentos que não tenham sido colocados no pólo passivo no início da demanda pelo autor. Segundo o art. 1.694 do CC, serão obrigados a pagar alimentos os parentes, cônjuges e companheiros, sendo segundo doutrina tradicional hipótese de litisconsórcio facultativo, considerando-se que sua formação dependerá da vontade do autor[13]. É evidente que, formado o litisconsórcio de forma inicial, será inaplicável a norma legal ora comentada, que só passa a ter alguma relevância prática na hipótese do autor propor a demanda de alimentos exclusivamente contra o parente que deve alimentos em primeiro lugar e esse não estiver em condições de suportar totalmente o encargo.
Perceba-se que são duas as exigências legais: não ter sido formado o litisconsórcio facultativo passivo de forma inicial e não ter o réu – “parente que deve alimentos em primeiro lugar” – condições de arcar total ou parcialmente com o encargo alimentar. Nessa hipótese, segundo o dispositivo legal, será possível chamar a integrar a lide os demais obrigados a prestar alimentos, que responderão na proporção de seus respectivos recursos. Apesar de a primeira exigência ser de fácil compreensão, a segunda merece uma análise mais cuidadosa, porque a legitimidade originária deve ser buscada na interpretação do dispositivo legal.
Do artigo 1698 do Código Civil se nota que a intervenção de terceiro deverá ser realizada nas hipóteses em que, além de não ter sido formado o litisconsórcio, a demanda de alimentos tenha sido proposta contra o parente que deve alimentos em primeiro lugar. Essa indicação seria o suficiente para se afirmar que, apesar de todos os parentes, cônjuges e companheiros responderem pelos alimentos, não pretendendo o autor litigar contra todos eles em litisconsórcio, deverá propor a demanda contra o devedor que primeiro deve responder pela dívida alimentícia, e somente na hipótese de não ter esse sujeito condições de suportar a obrigação, se admitirá a intervenção de terceiros conforme previsto em lei?
A melhor interpretação indica que o credor poderá propor a demanda judicial diretamente contra o co-devedor que demonstre ter melhores condições patrimoniais para satisfazer o crédito alimentar, ainda que ele não seja o devedor que deve primeiro pagar. Nesse caso, conforme corretas lições de Yussef Said Cahali, deve “aplicar-se analogicamente a parte final do art. 1.726, para permitir que, intentada ação de alimentos contra um parente de “grau imediato”, este chame a integrar a lide o parente que deve alimentos em primeiro lugar; verificando-se no próprio processo se este teria condições de suportar totalmente o encargo, e restando ao demandado originário apenas concorrer para a complementação do encargo”.[14]
5. Inadmissibilidade de se entender a intervenção do art. 1698 do Código Civil como denunciação à lide
É natural que se afaste desse caso qualquer possibilidade de se entender a intervenção de terceiro como sendo uma denunciação à lide, intervenção fundada no direito regressivo entre o denunciante e o denunciado. O denunciante convoca ao processo o denunciado para que esse seja desde já condenado a ressarcir seus eventuais prejuízos suportados com a demanda judicial, sendo importante notar que entre o denunciado e a parte contrária não existe qualquer relação jurídica de direito material. No plano material, as partes da relação jurídica principal têm uma relação entre elas e outra relação de direito material têm o denunciante e o denunciado. Na hipótese de intervenção ora analisada nada disso se verifica, sendo nítida a impropriedade do entendimento de tratar-se de uma denunciação à lide.
Nesse sentido se manifestou Humberto Theodoro Jr.:“Mas denunciação da lide não se entrevê, porque o réu da ação de alimentos não invoca relação de garantia nem tampouco exerce direito de regresso, não havendo como identificar o “chamamento a integrar a lide”, de que fala o art. 1698 do Código Civil, com a destinação da figura interventiva disciplinada no art. 70 do Código de Processo Civil”[15].
É importante salientar que a inadmissibilidade em se entender a intervenção de terceiros ora analisada como espécie de litisconsórcio se satisfaz com a circunstância de não existir entre os parentes, cônjuges e companheiros, qualquer direito de garantia no tocante à obrigação alimentar. Essa circunstância se intensifica em termos de clareza se trazido à baila o caráter irrepetível dos alimentos pagos, que aplicado para o beneficiado dos alimentos também atinge os co-devedores. Significa dizer que uma vez pagos os alimentos por obrigado que não era o que “deve alimentos em primeiro lugar”, ele jamais poderá cobrar daquele que deveria ter pago mas não o fez. Dessa forma, a idéia principal existente na denunciação à lide, da existência de um direito regressivo entre a parte e o terceiro que vem participar do processo em virtude da denunciação, não se encontra presente na intervenção ora analisada, o que já se mostra o suficiente para uma diferenciação clara e definitiva.
Por outro lado, deve-se recordar que na denunciação à lide não existe qualquer relação jurídica de direito material entre a parte contrária e o denunciado à lide, o que de forma evidente não se verifica entre os co-devedores de alimentos e  credor. Havendo previsão legal expressa que cria a obrigação de diversos sujeitos pagarem os alimentos – art. 1694, CC – resta indiscutível que entre todos eles e o credor de alimentos existe uma relação jurídica de direito material, de forma que, havendo a intervenção de algum deles no processo de alimentos já instaurado contra outro co-devedor, naturalmente esse sujeito que ingressará em processo alheio terá uma relação jurídica de direito material com o autor-credor. É a existência dessa relação, aliás, que permitirá sua condenação a pagar alimentos na proporção de seus respectivos recursos. Também por essa razão não se pode afirmar ser a intervenção ora analisada espécie de denunciação á lide.
6. Inadmissibilidade de se entender a intervenção do art. 1698 do Código Civil como chamamento ao processo
A diferença entre a intervenção de terceiro prevista pelo art. 1698 do Código Civil e o chamamento ao processo não é tão clara e óbvia quanto à diferença com a denunciação à lide, mas ainda assim é possível se identificar algumas características díspares que não permitem a conclusão de ser a intervenção ora analisada espécie de chamamento ao processo. O que torna essa conclusão mais difícil de ser obtida é que entre os dois institutos há certas características comuns, o que, entretanto, não é o suficiente para concluir de forma diversa da já indicada. Nem mesmo o entendimento de tratar-se de um chamamento ao processo sui generis convence, porque a flexibilização de conceitos deve ser aplicada com extremo cuidado, sob pena de sempre ser possível afirmar que determinado fenômeno é um instituto já previsto, mas com algumas diferenças. Somente diferenças muito sutis admitirão tal pensamento, o que não se verifica no caso ora enfrentado.
6.1. Natureza da obrigação alimentar entre os co-devedores
O grande obstáculo à adoção desse entendimento diz respeito à diferença existente entre a espécie de obrigação de que trata o chamamento ao processo e a obrigação alimentar entre todos os obrigados.
É pacífico em sede doutrinária que a obrigação alimentar não é solidária, não sendo possível exigir-se o pagamento da integralidade da dívida dessa natureza de um dos devedores, à escolha do credor[16]. Na realidade, cada devedor responderá nos limites da sua possibilidade, o que naturalmente fará com que possa no caso concreto existirem obrigações desiguais. A ausência da possibilidade do credor exigir tão somente de um dos devedores a totalidade da dívida já é o suficiente para afastar a obrigação alimentar do rol das obrigações solidárias, o que é reforçado pela impossibilidade daquele que pagou o valor integral cobrar um ressarcimento dos demais devedores alimentares. Além da ausência de solidariedade, também está pacificado em sede doutrinária que a obrigação alimentar é divisível, porque cada devedor se exime de sua obrigação nos limites de suas possibilidades, ainda que a totalidade da obrigação ainda não tenha sido satisfeita. Havendo dois devedores, cada qual responsável pelo pagamento de 50% da dívida alimentar, a quitação de um deles já o libera da obrigação, ainda que o outro seja inadimplente. É justamente essa limitação de responder nos limites da possibilidade de cada devedor que impede ser a obrigação alimentar solidária.
O chamamento ao processo, regulado pelo art. 77 do CPC, é intervenção de terceiro fundada em obrigação solidária, sendo de especial interesse o disposto no art. 77, inc. III, do CPC, dispositivo legal que para parcela da doutrina seria o suficiente para explicar o fenômeno de intervenção de terceiros regulamentado no art. 1.698 do CC. Assim vem redigido o dispositivo processual: “Art. 77: É admissível o chamamento ao processo: III - de todos os devedores solidários, quando o credor exigir de um ou de alguns deles, parcial ou totalmente, a dívida comum”. Conforme anteriormente analisado, essa espécie de chamamento ao processo trata de obrigações solidárias, admitindo-se ao devedor demandado o chamamento dos demais co-obrigados para responder pela cobrança diante do credor.
Sendo o chamamento ao processo intervenção fundada em obrigação solidária e não sendo solidária a obrigação alimentar, como seria possível afirmar-se que o art. 1.698 do CC é espécie de chamamento ao processo?[17] Como se nota, não é uma diferença sutil, que possa simplesmente ser absorvida no próprio conceito do chamamento ao processo, porque essa espécie de intervenção de terceiros somente existe em virtude da existência entre parte e terceiro de dívida de natureza solidária. Parece bastante claro que, sem essa solidariedade entre parte e terceiro, a intervenção jamais poderá ser considerada uma espécie – ainda que sui generis – de chamamento ao processo.
Cássio Scarpinella Bueno, assim se manifesta sobre o tema: “O que penso possível – e desejável, à luz do direito material – fazer é ampliar o termo ‘solidariedade’ empregado no inciso III do art. 77 do CPC para nele admitir, pelo menos na hipótese a que aqui me refiro, também o chamamento de devedores comuns. Além de não haver qualquer prejuízo para o processo – muito menos para o autor, principal interessado em ampliar a possibilidade concreta da efetivação da tutela jurisdicional a seu favor -, as diversas obrigações alimentares manifestam-se de forma bastante próxima à solidariedade.[18]”
Não parece que o entendimento transcrito deva ser tido como o mais acertado. Não se entende a necessidade de que, por mais elástica que necessite ser a interpretação dos institutos, novas normas de direito devam ser sempre encaixadas em institutos já existentes. O caso ora enfrentado é típico. Por que é tão necessário se amoldar a intervenção regulada pelo art. 1.698 do CC a algumas das espécies de intervenção de terceiros tipificadas pelo Código de Processo Civil? Por que não simplesmente reconhecer que se trata de uma nova espécie de intervenção de terceiro, criada pelo direito material? Essas questões serão respondidas no próximo tópico
6.2. A legitimação para convocar o terceiro ao processo
A ausência de solidariedade na obrigação alimentar já seria o suficiente para afastar a intervenção ora analisada do chamamento ao processo, mas existem outras características próprias do instituto que também justificam o entendimento de que a intervenção ora analisada é uma novidade no ordenamento jurídico. A legitimidade exclusiva do chamamento ao processo é do réu, único que poderá chamar ao processo os demais devedores solidários (na hipótese do art. 77, inc. III, do CPC), até mesmo porque o instituto somente o favorece, ao permitir a formação de título contra tais devedores. Na hipótese da intervenção dos obrigados na ação de alimentos, o instituto naturalmente se presta a favorecer o autor, porque o aumento do número de obrigados no pólo passivo aumentará suas chances de receber. Dessa forma, é natural que se admita que o autor chame os demais devedores ao processo, até mesmo porque tal convocação não é de interesse do réu, que responderá nos limites de suas possibilidades e não se preocupará se o autor não está totalmente satisfeito.
Também por esse aspecto não se mostra adequado afirmar-se que a intervenção prevista especificamente para a ação de alimentos possa ser entendida como espécie de chamamento ao processo. Note-se que a mera possibilidade de que o próprio autor, diante da frustração de sua pretensão contra o devedor que primeiro deveria pagar os alimentos, possa convocar outros co-devedores a participar do pólo passivo da demanda, afasta de forma insuperável o instituto processual ora enfrentado do chamamento ao processo.
Ainda que se afirme que houve a formação de um litisconsórcio facultativo ulterior – circunstância que dependendo da corrente doutrinária adotada a respeito da natureza do chamamento ao processo pode ser entendida como identidade entre as duas espécies de intervenção – não foi por vontade do réu que o litisconsórcio foi formado, mas em razão de manifestação expressa do autor nesse sentido, na tentativa de ampliar as possibilidades de satisfação da obrigação de natureza alimentar por meio da ampliação dos devedores trazidos ao processo.
6.3. Concordância do autor na formação do litisconsórcio ulterior
Já foi devidamente consignado que, independente da qualidade jurídica que o chamado ao processo adquire na demanda na qual ingressa – assistente litisconsorcial ou litisconsorte – jamais poderá o autor simplesmente rejeitar o ingresso desse terceiro no processo[19]. Na realidade, nem ao menos se ouve o autor a respeito, que deverá suportar a ampliação subjetiva da demanda sem qualquer possibilidade de oposição quanto à essa circunstância. Ainda que tal circunstância traga prejuízos ao autor – o processo certamente demorará mais por ter se tornado a relação jurídica processual mais complexa – entende-se que os ganhos advindos dessa espécie de intervenção – economia processual e harmonização dos julgados - superam tais prejuízos[20]. Diante disso, nenhuma resistência poderá opor o autor à postura do réu de chamar ao processo os co-devedores.
O mesmo não se poderá dizer da intervenção prevista especificamente para a demanda de alimentos, admitindo-se nesse caso a possibilidade do próprio réu demandado convocar os demais co-devedores para formar o litisconsórcio passivo ulterior[21]. Já foi devidamente afirmado que em regra não será o réu que irá convocar os demais devedores ao processo, não sendo, entretanto, proibido ao mesmo assim o fazer, o que se admite em hipóteses em que efetivamente não tenha condições de arcar com a totalidade dos encargos, mas, preocupado com o bem estar do alimentando, indique outros devedores em situação financeira mais confortável. Nesse caso se pensa em devedor na acepção pura do termo; deve porque não tem como realizar o pagamento, ainda que pretenda realmente que o credor seja satisfeito em seu direito.
É evidente que nesse caso a indicação do réu deverá obrigatoriamente passar pelo crivo do autor, porque esse não pode ser obrigado a litigar contra quem não deseja. Nesse ponto, aliás, encontra-se uma substancial diferença entre as duas espécies de intervenção de terceiro, que não poderia ser defendida na hipótese de se entender que a intervenção ora tratada é realmente uma espécie de chamamento ao processo. Conforme já consignado anteriormente, não é possível qualquer oposição do autor quanto ao ato do réu em chamar ao processo os co-devedores, pouco importando, se esses terceiros passaram a figurar no processo como réus ou como assistentes litisconsorciais. Na ação de alimentos, entretanto, não parece que esse entendimento deve ser aplicado, bastando para tal conclusão a análise da ratio da norma.
A permissão para que durante o processo de alimentos, e configurada a ausência de capacidade do réu em satisfazer o direito do autor, possam ser incluídos no pólo passivo da demanda judicial outros co-devedores, em nítida formação de litisconsórcio ativo passivo ulterior, tem como objetivo único proteger de forma mais adequada o credor de alimentos, que não mais se verá obrigado a propor um novo processo contra outros devedores para a satisfação de seu direito. O objetivo, portanto, é a idéia de economia processual e celeridade na satisfação do direito, mas tudo isso se levando em conta a condição de hipossuficiência do autor e a própria natureza do direito debatido, referente à manutenção digna do ser humano. Significa dizer que, apesar de tratar-se de norma que protege valores de ordem pública – economia processual e celeridade – o dispositivo legal foi feito para favorecer o credor de alimentos, sendo esse o principal objetivo do legislador.
Apesar de ter sido muito bem recebido pela doutrina nacional, o art. 1.698 do CC também trouxe algumas preocupações. Por um lado é inegável que essa nova espécie de intervenção nas ações de alimentos otimiza as chances de satisfação integral do credor porque permite um aumento no número de sujeitos que participam do pólo passivo do processo quando o réu originário não consegue satisfazer totalmente a obrigação alimentar. Por outro lado, entretanto, há a preocupação com as complicações que tal espécie de intervenção poderá gerar no procedimento das ações de alimentos, tradicionalmente simples e expedito.
É preciso distinguir duas situações. A primeira diz respeito à necessidade de intervenção de terceiros com condições de satisfazer a obrigação alimentar diante da incapacidade do réu originário. Nesse caso, ainda que seja inevitável uma complicação procedimental, o autor será beneficiado com a vinda de terceiros ao processo para responder pela obrigação, devendo suportar o natural aumento de complexidade do procedimento. A segunda situação é bem diversa, dizendo respeito a manobras protelatórias do réu com o objetivo de complicar o procedimento e impedir um trâmite regular da demanda[22]. Nesse caso, as sanções processuais deverão ser duramente aplicadas, como sugere a melhor doutrina que enfrentou o tema[23]. Com isso se concorda, mas registre-se que, sendo sempre a intervenção dependente da vontade do autor – ainda que de iniciativa do réu –, as manobras protelatórias certamente diminuirão muito sua freqüência.
Essa constatação é importante para que se conclua que, não pretendendo o autor da ação de alimentos ver tornar-se complexa – ou mais complexa – a relação jurídica processual, poderá se opor à pretensão do réu, que bem poderá estar amparada em má-fé e deslealdade, procurando somente tumultuar o andamento procedimental por meio da formação do litisconsórcio passivo ulterior. Sendo a norma legal elaborada para proteger o autor-credor, naturalmente não deve ser vista com bons olhos uma intervenção que somente torne complexa a relação jurídica processual e moroso o procedimento, sem qualquer ganho efetivo ao credor. Dessa forma, e as razões que levarão a isso dependem exclusivamente do caso concreto, não pretendendo que o litisconsórcio passivo seja formado, o autor poderá se opor à convocação de co-devedores realizadas pelo réu.

7. Intervenções de terceiro atípicas criadas pelo Código de Processo Civil

Conforme se pode notar do desenvolvimento do raciocínio a respeito do art 1.698, CC, entendo que o dispositivo legal criou uma nova espécie de intervenção de terceiro, que não se confunde com nenhuma daquelas previstas no Capítulo IV, do Título II, do Livro I, do Código de Processo Civil. Quanto à criação de uma nova espécie de intervenção de terceiro, não se trata propriamente de novidade, porque já existem intervenções de terceiro que não se amoldam em nenhuma das espécies previstas pelo estatuto processual, e nem por isso deixam de ser tratadas como formas de intervenção de terceiro.
No processo de produção antecipada de provas a melhor doutrina criou uma espécie de assistência provocada, na qual o requerente da produção antecipada de provas simplesmente pedirá a citação do terceiro para fazer parte desse processo. Segundo Cândido Rangel Dinamarco, “se o terceiro comparecer e efetivamente participar, ele o fará na condição de assistente do denunciante; se se omitir e ficar ausente (contumácia), a prova produzida será igualmente eficaz perante ele, em virtude da denunciação feita”[24]. Como se percebe da lúcida lição do processualista paulista, essa espécie atípica de intervenção – assistência provocada – terá o mérito de ampliar subjetivamente a eficácia da prova produzida antecipadamente.
Não só a doutrina, como também a jurisprudência mostrou-se sensível à problemática mencionada; existem julgados no sentido de admitir-se terceiro no processo cautelar de produção antecipada de provas por meio de uma intervenção atípica chamada assistência provocada[25].

O mesmo ocorre na execução, tanto no cumprimento de sentença como no processo autônomo. O mesmo fenômeno ocorre no processo executivo e na fase de cumprimento de sentença[26].

Sempre que um terceiro ingressa na demanda executiva durante a fase de expropriação do bem com a intenção de adquiri-lo estar-se-á diante de uma espécie atípica de intervenção de terceiros. Atualmente pode se imaginar essa situação na adjudicação por todos os legitimados que não o exeqüente (art. 685-A, §§ 2° e 4°, CPC); na alienação do bem realizada pelo próprio exeqüente ou por corretor especializado, em forma de expropriação criada pela Lei 11. 382/06 – alienação por iniciativa particular (art. 685- C, CPC); na alienação ocorrida em hasta pública por meio de arrematação, naturalmente por sujeito que não seja o exeqüente.

Também haverá intervenção anômala sempre que outros credores ingressem na demanda executiva para discutir o direito de preferência. Cada qual participará do incidente processual que se formará defendendo interesse próprio à satisfação de seu crédito em primeiro lugar, sendo impossível se imaginar que essa situação seja amoldável às espécies de intervenção de terceiros previstos pelo Código de Processo Civil.


8. Conclusão
Não sendo possível incluir a intervenção de terceiros prevista pelo art. 1698 do Código Civil no âmbito da denunciação à lide ou do chamamento ao processo – a análise de outras espécies de intervenção foi dispensada em virtude de diferenças básicas e indiscutíveis com o instituto ora analisado – não há outra conclusão possível que não seja a de que o Código Civil criou uma espécie anômala de intervenção de terceiros, que não se confunde com nenhuma daquelas espécies previstas no Capítulo VI do Livro I do Código de Processo Civil.
Apesar de não ser freqüente uma norma de direito material criar uma espécie de intervenção de terceiros, não se vê qualquer problema nisso excepcionalmente ocorrer, como é o caso, dada a constatação pacífica da existência de normas heterotópicas, que mesmo previstas no Código Civil são regras de procedimento e previstas no Código de Processo Civil são regras de direito material. É evidente que a localização da norma não modifica sua natureza jurídica, e a confusão é conseqüência natural da proximidade – a cada dia mais reconhecida – entre o direito material e o direito processual.
Registre-se que, nesse ponto, não possível concordar plenamente com Cássio Scarpinella Bueno e Humberto Theodoro Jr. no sentido de que a definição da natureza jurídica do instituto é secundária, porque, quer seja um chamamento ao processo, quer seja uma nova espécie de intervenção de terceiro, o importante é que o instituto existe e bem por isso deve ser aplicado. A visão instrumentalista deve ser saudada, mas não resolve problemas procedimentais no caso concreto, o que somente ocorrerá com a exata definição da natureza jurídica da intervenção ora analisada.
Em conclusão, ao menos no campo acadêmico, parece não haver maiores dúvidas de que a intervenção ora tratada é diferente do chamamento ao processo, e por tal razão não deve ser confundida com tal instituto. Trata-se, na verdade, de nova espécie de intervenção de terceiro, criada pelo direito material.[27]. Esse entendimento, de fato, pelos fundamentos já expostos, parece ser o mais correto.

[1] Registre-se crítica de Cândido Rangel Dinamarco, Intervenção de terceiros, 3ª ed., São Paulo, Malheiros, p. 137, ao nome do instituto: “Não é correta a locução denunciar alguém da lide, às vezes empregada por alguns; fazer a alguém a denunciação da lide é denunciar a lide a ele e não, como equivocadamente já disseram, denunciá-lo da lide”. Opta-se no presente texto pela manutenção do termo legal.
[2] Vicente Greco Filho, Da intervenção de terceiros, 3ª ed., São Paulo,Saraiva, 1991, p. 83: “Ocorrendo a denunciação, o processo se amplia objetiva e subjetivamente. Subjetivamente porque ingressa o denunciado, o qual passará a demandar juntamente com o autor se o denunciante for o autor, e juntamente com o réu se o denunciante for o réu. Objetivamente porque se insere uma demanda implícita do denunciante contra o denunciado, de indenização por perdas de danos”.
[3] Ernane Fidélis dos Santos, Manual de direito processual civil, vol. 1,10 ª ed., São Paulo, Saraiva, 2003, p. 96. Existem outras diferenças, como bem observado por Antonio Cláudio Costa Machado, Código de Processo Civil interpretado e anotado, São Paulo, Manole, 2006, p. 381.
[4] Nesse sentido a doutrina majoritária: Cândido Rangel Dinamarco, Intervenções de terceiro, 3ª ed., São Paulo, Malheiros, 2002, pp. 149-150; Arruda Alvim, Manual de direito processual civil, vol. II, 9ª ed., São Paulo, RT, 2002, p. 173.
[5] Assim Athos Gusmão Carneiro, 13ª ed., São Paulo, Saraiva, 2001, p. 114. Parece ser esse o entendimento majoritário do STJ: REsp. 686762/RS, rel. Min. Castro Filho, 3ª Turma, DJU 18/12/2006, p. 368; REsp 699680/DF, rel. Min. Fernando Gonçalves, 4ª Turma, DJU 27/11/2006, p. 288; REsp 211119/ES, rel. Min. João Otávio de Noronha, 2ª Turma, DJU 20/06/2005, p. 181.
[6] STJ, REsp 699090/SP, rel. Min. Paulo Medina, 6ª Turma, DJ 19/06/2006, p. 215: “A denunciação à lide não estabele vínculo de direito material entre a parte adversa do denunciante e o denunciado, tendo por finalidade eventual responsabilidade do denunciado perante o denunciante. Inadmissível a condenação do denunciado na lide principal” (trecho da ementa)
[7] Fabiano Carvalho e Rodrigo Barioni, “Eficácia da sentença na denunciação da lide: execução direta ao denunciado”, in Aspectos polêmicos e atuais sobre os terceiros no processo civil e assuntos afins, coord. Fredie Didier Jr. e Teresa Arruda Alvim Wambier, São Paulo, RT, 2004, pp. 379-381. Daniel Ustárroz, A intervenção de terceiros no processo civil brasileiro, Porto Alegre, Livraria do Advogado, 2004, pp. 123-126, aponta como justificativa no direito material o princípio da função social do contrato e boa-fé objetiva (arts. 421 e 422, Código Civil).
[8] Nesse exato sentido Sérgio Cavalieri Filho, Programa de responsabilidade civil, 4ª ed., São Paulo, Malheiros, 2003, p. 446.
[9] Ernane Fidélis dos Santos, Manual de direito processual civil, 10ª ed., São Paulo, Saraiva, 2003, p. 96: “Regra fundamental, pois, para se distinguir a denunciação à lide do chamamento ao processo está no fato de que, sempre que o credor puder cobrar tanto de um quanto do outro, em forma de solidariedade passiva, a hipótese é de chamamento e não de denunciação”.
[10] Cândido Rangel Dinamarco, op. cit., pp. 162-163.
[11] Nelson Nery Jr. e Rosa Maria Andrade Nery, Código de Processo Civil comentado, 7ª ed., São Paulo, RT, 2003, p. 448; Ovídio Baptista da Silva e Fábio Gomes, Teoria geral do processo civil, 3ª ed., São Paulo, RT, 2002, p. 206; Marcelo Abelha Rodrigues, Elementos de direito processual civil, vol. 2, 2ª ed., São Paulo, RT, 2003, pp. 303-306.
[12] Cândido Rangel Dinamarco, Intervenção de terceiros, op. cit., p. 163 e Daniel Ustarroz, A intervenção de terceiros no processo civil brasileiro, op. cit., pp. 134-137, ambos reconhecendo o conflito com as normas de direito material. Ainda, afirmando tratar-se de litisconsórcio facultativo ulterior, Athos Gusmão Carneiro, Intervenção de terceiros, op. cit., p. 127; Gustavo Nogueira, Processo civil, tomo I, 2ª ed., Rio de Janeiro, Lumen Juris, 2005, p. 222; José Miguel Garcia Medina, “Chamamento ao processo – questões polêmicas”, in Revista de Processo n° 101, 2001, pp. 240-241.
[13] Por todos, Belmiro Pedro Welter, “Rito processual na prestação alimentar, litisconsórcio e tutela antecipada”, in Alimentos no Código Civil, coord. Francisco José Cahali e Rodrigo da Cunha Pereira, São Paulo, Saraiva, 2005, pp. 227-228.
[14] Cf. Dos alimentos, 3ª ed., São Paulo, RT, 1999, p. 172.
[15] Cf. O NCC e as regras heterotópicas de natureza processual, p. 139.
[16] Por todos, Yussef Said Cahali, Dos alimentos, 3ª ed., São Paulo, RT, 1999, pp. 150 – 166.
[17] Justamente pela ausência de solidariedade Yussef Said Cahali, Dos alimentos, op. cit., p. 169, distingue a intervenção prevista para a ação de alimentos do chamamento ao processo.
[18] Cf. Chamamento ao processo e o devedor de alimentos – uma proposta de interpretação para o art. 1.698 do Novo Código Civil, p. 88. No mesmo sentido Humberto Theodoro Jr., O NCC e as regras heterotópicas de natureza processual, pp. 139-140.
[19] Daniel Ustárroz. A intervenção de terceiros no processo civil brasileiro, op. cit., pp. 136-137, afirma que a concordância do autor deveria ser exigida como forma de respeitar-se o direito do credor em litigar contra quem quiser na hipótese da dívida ser solidária.
[20] Cândido Rangel Dinamarco, Intervenção de terceiros, op. cit., p. 163, concordar com a presumível complicação procedimental, mas ressalta que “isso só deporia contra o instituto, porém, se se partisse da nefasta premissa inerente ao método do processo civil do autor, hoje repudiado por todos que buscam um processo de resultados e propugnam pela busca do maior proveito útil possível mediante o exercício da jurisdição.”
[21] Para Belmiro Pedro Welter, “Rito processual na prestação alimentar, litisconsórcio e tutela antecipada”, in Alimentos no Código Civil, op. cit., pp. 229-230, trata-se de litisconsórcio necessário, porque o “demandado terá o dever, e não só o direito, de chamar ao processo os co-responsáveis da obrigação alimentar, caso ele não consiga suportar sozinho esse encargo, porque o credor tem o direito de receber a integralidade dos alimentos, que deverão ser fixados nesse processo”. Corretamente, em sentido contrário, Yussef Said Cahali, Dos alimentos, op. cit., p. 171.
[22] Sílvio Venosa, Direito Civil: Direito de família, p. 403; Sílvio Rodrigues, Direito Civil, vol. 6, p. 381.
[23] Luiz Felipe Brasil Santos, Novos aspectos da obrigação alimentar, p. 228.
[24] Cf. Intervenção de terceiros, cit., p. 170. Já se havia manifestado nesse sentido Sidney Sanches, Denunciação da lide no direito processual civil brasileiro. São Paulo: RT, 1984, p. 143-145. Ainda José Manoel de Arruda Alvim, Manual de direito processual civil. 6. ed. São Paulo: RT, 1997, v. II, p. 199; Cássio Scarpinella Bueno, Partes terceiros no processo civil brasileiro, cit., p. 275; Victor A. A. Bomfim Marins, Tutela cautelar, 2ª ed., Curitiba, Juruá, 2003, p. 348 e Carlos Alberto Alvaro de Oliveira, Comentários ao Código de Processo Civil, vol. III, tomo I, 5ª ed., Rio de Janeiro, Forense, 2001, p.. 239, a lembrar que “caberá ao juiz, todavia, admiti-la somente nos casos em que a demora na realização de tais providências não determine impossibilidade na colheita emergencial da prova, causando dano irreparável ao requerente originário da medida”. Para Flávio Cheim Jorge, “Sobre a admissibilidade do chamamento ao processo”. Revista de Processo, São Paulo, RT, 1999, v. 93, p. 113, “dessa situação é que, ainda que não se possa, propriamente, dizer de chamamento ao processo se trata, é configuração parecida”.
[25] Nesse sentido, julgado do Superior Tribunal de Justiça, REsp 213556/RJ, 3ª Turma, rel. min. Nancy Andrigui, DJ 17.09.2001, p. 161, ementa: “Processo civil. Recurso especial. Ação cautelar. Produção antecipada de prova. Denunciação da lide. Assistência. Não cabe denunciação da lide em medida cautelar de produção antecipada de prova. Precedente. É admissível a intervenção de terceiro em ação cautelar de produção antecipada de prova, na forma de assistência provocada, pois visa garantir a efetividade do princípio do contraditório, de modo a assegurar a eficácia da prova produzida perante aquele que será denunciado à lide, posteriormente, no processo principal. Recurso especial a que se conhece pelo dissídio e, no mérito, nega-se provimento”. No mesmo sentido: RT 641/150 (TJSP): “Intervenção de terceiro – Denunciação da lide. Descabimento em medida cautelar de produção antecipada de prova. Procedimento enquadrável apenas no processo principal. Hipótese, contudo, em que possível a participação do denunciado como assistente do denunciante, para resguardo da futura denunciação e amplo acompanhamento da preparatória.” Não se pode, entretanto, chegar a conclusão obtida por Cássio Scarpinella Bueno, “Aspectos polêmicos da produção antecipada de provas”, in Revista de Processo n° 91, São Paulo, RT, 1998., p. 333, “no sentido de que a prova seja colhida em face de todos aqueles contra quem, na chamada “ação principal”, será a mesma produzida”, sob pena de irregularidade formal do processo e, como conseqüência, o impedimento à prolação de sentença homologatória pelo juiz. Não se trata, na verdade, de regularidade formal, mas simplesmente uma questão de eficácia da prova, a ser analisada no processo principal.
[26] Tratam do tema, Araken de Assis, Manual do processo de execução, 7ª ed., São Paulo, RT, 2001, p. 244; Cândido Rangel Dinamarco, Instituições de direito processual civil, vol. IV, São Paulo, Malheiros, 2004, pp. 164-165; Sérgio Shimura, Título executivo, 2ª ed., São Paulo, Método, 2005, p. 85.
[27] Sílvio Venosa, Direito Civil: Direito de família, p. 403; Luiz Felipe Brasil Santos, Novos aspectos da obrigação alimentar, pp. 227-228. A defender tratar-se de litisconsórcio passivo facultativo ulterior, Fredie Didier Jr., Normas processuais do novo Código Civil, p. 125; Maria Helena Diniz, Curso de direito civil brasileiro, vol. 5, p. 555.