De acordo com o art.
5º, inciso XLIX, da Constituição Federal, “é assegurado aos presos o respeito à
integridade física e moral”. Ao proclamar o respeito à integridade física e
moral dos presos, a Carta Magna garante ao preso a conservação de todos os direitos
fundamentais reconhecidos à pessoa livre, à exceção, é claro, daqueles que
sejam incompatíveis com a condição peculiar de uma pessoa presa, tais como a
liberdade de locomoção (CF, art. 5º, XV), o livre exercício de qualquer
profissão (CF, art. 5º, XIII), a inviolabilidade domiciliar em relação à cela
(CF, art. 5º, XI) e o exercício dos direitos políticos (CF, art. 15, III). Não
obstante, mantém o preso os demais diretos e garantias fundamentais, tais como
o respeito à integridade física e moral (CF, art. 5º, III, V, X e LXIV), à
liberdade religiosa (CF, art. 5º, VI), ao direito de propriedade (CF, art. 5º,
XXII), e, em especial, aos direitos à vida e à dignidade humana.[1]
De modo semelhante, o
Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos prevê em seu art. 10 que
toda pessoa privada de sua liberdade deverá ser tratada com humanidade e
respeito à dignidade inerente à pessoa humana, dispondo que “as pessoas
processadas deverão ser separadas, salvo em circunstâncias excepcionais, das
pessoas condenadas e receber tratamento distinto, condizente com sua condição
de pessoas não condenadas; e, as pessoas jovens processadas deverão ser
separadas das adultas e julgadas o mais rápido possível”. Na mesma linha, o
Pacto de São José da Costa Rica consagra regras protetivas aos direitos dos
reclusos, determinando em seu art. 5º que os processados devem ficar separados
dos condenados, salvo em circunstâncias excepcionais, e devem ser submetidos a
tratamento adequado a sua condição de pessoas não condenadas.
A questão relativa ao
respeito à integridade moral do preso ganha importância quando se verifica a
crescente importância dada pela mídia às mazelas do processo penal. Com efeito,
hoje em dia, não são raras as prisões cautelares acompanhadas ao vivo pela
imprensa que, coincidentemente, sempre está presente no lugar e hora marcados
para registrar tudo. Tais imagens, depois, são exploradas à exaustão nos
telejornais pelos doutrinadores do direito penal e processual penal, o que
sempre é feito a título de informar a população. Sob os holofotes da mídia, é
colocada em segundo plano a finalidade de toda e qualquer prisão cautelar, qual
seja, a de assegurar a eficácia das investigações ou do processo penal. Passam
as prisões cautelares, outrossim, a desempenhar um efeito sedante da opinião
pública pela ilusão de justiça instantânea,[2] exercendo uma função
absolutamente incoerente e proscrita para um instrumento legitimado por sua
feição cautelar.
Não olvidamos a
importância da liberdade de expressão, compreendida como a possibilidade de
difundir livremente os pensamentos, idéias e opiniões, mediante a palavra
escrita ou qualquer outro meio de reprodução. No entanto, se aos órgãos de
informação é assegurada a maior liberdade possível em sua atuação, também se
lhes impõe o dever de não violar princípios basilares do processo penal,
substituindo o devido processo legal previsto na Constituição por um julgamento
sem processo, paralelo e informal, mediante os meios de comunicação.
Oportuna, nesse sentido, a transcrição das
palavras do Min. Marco Aurélio: “(...) Ninguém desconhece a necessidade de
adoção de rigor no campo da definição de responsabilidade, mormente quando em
jogo interesses públicos da maior envergadura. No levantamento de dados, no
acompanhamento dos fatos, no esclarecimento da população, importante é o papel
exercido pela imprensa. Todavia, há de se fazer presente advertência de Joaquim
Falcão, veiculada sob o título A imprensa e a justiça, no Jornal O Globo, de
06.06.93: `Ser o que não se é, é errado. Imprensa não é justiça. Esta relação é
um remendo. Um desvio institucional. Jornal não é fórum. Repórter não é juiz.
Nem editor é desembargador. E quando, por acaso, acreditam ser, transformam a
dignidade da informação na arrogância da autoridade que não têm. Não raramente,
hoje, alguns jornais, ao divulgarem a denúncia alheia, acusam sem apurar.
Processam sem ouvir. Colocam o réu, sem defesa, na prisão da opinião pública.
Enfim, condenam sem julgar´. Exige-se do Judiciário a equidistância, a atuação
desapaixonada, buscando, assim, o restabelecimento da paz jurídica
momentaneamente abalada. O instituto da prisão preventiva coloca-se no campo da
absoluta excepcionalidade. O certo, o constitucional é aguardar-se a formação
da culpa após haver o acusado exercido, em toda a plenitude, o direito de
defesa. Pedagógica é a Carta da República ao revelar algo que decorre, até
mesmo, do princípio da razoabilidade, da presunção do que normalmente se
verifica, da impossibilidade de inverter-se a ordem natural das coisas,
assentando-se conclusão somente passível de ser alcançada ao término da
instrução penal, após desincumbir-se o Ministério Público do ônus processual de
comprovar, de forma robusta, a culpa do acusado. Impossível é esquecer que ninguém
será considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença condenatória
(inc. LXVII do art. 5º da CF).”[3]
Especificamente em
relação à divulgação da imagem de pessoas presas, o que se vê no dia-a-dia é
uma crescente degradação da imagem e da honra produzida pelos meios de
comunicação de massa, que reproduzem a imagem do preso sem que haja prévia
autorização do preso, nem tampouco um fim social na sua exibição. Utilizam sua
imagem, pois, como produto da notícia, a fim de saciar a curiosidade do povo.
Como esclarece Eugênio Bucci, “os programas sensacionalistas do rádio e os
programas policiais de fim de tarde em televisão saciam curiosidades perversas
e até mórbidas tirando sua matéria-prima do drama de cidadãos humildes que
aparecem nas delegacias como suspeitos de pequenos crimes. Ali, são
entrevistados por intimidação. As câmeras invadem barracos e cortiços, e gravam
sem pedir licença a estupefação de famílias de baixíssima renda que não sabem
direito o que se passa: um parente é suspeito de estupro, ou o vizinho acaba de
ser preso por tráfico, ou o primo morreu no massacre do fim de semana no bar da
esquina. A polícia chega atirando; a mídia chega filmando. (...) Como vivem à
margem dos direitos, essas pessoas não têm reconhecido o seu direito à
privacidade; sua intimidade não existe – ou não vale nada”.[4]
Queremos crer,
portanto, e seguindo a lição de Ana Lúcia Menezes Vieira,[5] que a reprodução
pública da imagem de pessoas envolvidas em crimes deve ser vedada se ela
resulta de modo anti-social, aflitivo ou degradante, a não ser que haja
autorização do titular da imagem, ou se necessária à administração da justiça –
exemplo seria o retrato falado ou a própria fotografia, para fins
investigativos.
Ora, como dito acima,
a condição de cidadão preso não lhe retira o direito ao respeito à integridade
moral e à dignidade[6]. Seus direitos personalíssimos devem ser tutelados de
forma mais eficaz, não só por jornalistas, como também por autoridades
policiais e membros do Ministério Público, que devem se abster de exibir presos
à mídia. E isso não só para preservar os direitos personalíssimos do preso,
como também para evitar que inocentes sejam identificados indevidamente como
autores de delitos.
Infelizmente, não são
poucos os exemplos de pessoas que são exibidas à mídia como suspeitas da
prática de delitos, mas cuja inocência é posteriormente reconhecida. Além do
célebre episódio da “Escola Base”[7], e do denominado crime do Bar Bodega[8],
em um caso ocorrido em novembro de 2006, no bairro de Perdizes, localizado na
cidade de São Paulo, relativo a um casal de idosos que foi encontrado morto a
facadas dentro de sua residência, a Polícia apressou-se em apontar o filho do
casal como suspeito de ter praticado o duplo homicídio, já que não foram encontrados
inicialmente sinais de arrombamento nem de sangue na residência. Como
conseqüência do açodamento da Polícia, e da imediata divulgação pela imprensa
que induziram uma pré-convicção de culpa do filho do casal, a casa em que
residia a família foi pichada com a palavra assassino, em referência ao filho
do casal, que também passou a ser hostilizado pelos moradores do bairro.
Posteriormente, no entanto, a mesma Polícia encontrou manchas de sangue na casa
ao lado, além de pegadas na parte de dentro da residência onde ocorreu o crime
até o muro, confirmando uma rota de fuga usada pelo verdadeiro autor do delito.
Dois dias depois, o criminoso apresentou-se à Polícia, sendo com ele apreendida
a faca utilizada no crime. Difícil expressar o prejuízo causado ao filho do
casal: além de perder seus pais, em um crime bárbaro e cruel, foi apontado
pelas autoridades policiais como suposto autor do delito, sendo, então,
submetido ao tradicional linchamento midiático, e transformado, aos olhos da
população, em culpado. Por mais que a mídia se apressasse depois em desfazer o
equívoco, já era tarde demais: a violência já estava consumada.
Apesar de a legislação brasileira não possuir
normas infraconstitucionais regulamentando a publicidade mediata das
investigações e dos atos judiciais, a fim de preservar os direitos
personalíssimos do preso (CF, art. 5º, incisos X e XLIX), é possível encontrar
alguma normatização do assunto através de Portarias e Regulamentos dos próprios
órgãos policiais.
A título de exemplo,
dispõe o art. 11 da Portaria nº 18 da Delegacia Geral de Polícia do Estado de
São Paulo[9]: “As autoridades policiais e demais servidores zelarão pela
preservação dos direitos à imagem, ao nome, à privacidade e à intimidade das
pessoas submetidas à investigação policial, detidas em razão da prática de
infração penal ou a sua disposição na condição de vítimas, em especial enquanto
se encontrarem no recinto de repartições policiais, a fim de que a elas e a
seus familiares não sejam causados prejuízos irreparáveis, decorrentes da
exposição de imagem ou de divulgação liminar de circunstância objeto de
apuração. Parágrafo único. As pessoas referidas nesse artigo, após orientadas
sobre seus direitos constitucionais, somente serão fotografadas, entrevistadas
ou terão suas imagens por qualquer meio registradas, se expressamente o
consentirem mediante manifestação explícita de vontade, por escrito ou por
termo devidamente assinado, observando-se ainda as correlatas normas editadas
pelos Juízos Corregedores da Polícia Judiciária das Comarcas”. Oxalá seja a
referida portaria observada no dia-a-dia de delegacias e fóruns criminais.
[1] MORAES, Alexandre de. Constituição do
Brasil: interpretada e legislação constitucional. 5ª ed. São Paulo: Atlas,
2005. 338.
[2]
LOPES JR. Aury; BADARÓ, Gustavo Henrique. Direito ao Processo Penal no
prazo razoável. Rio de Janeiro. Editora Lumen Juris: 2006. p. 55.
[3] STF – HC – Liminar – Rel. Marco Aurélio –
j. 14.06.2000 – Revista Síntese 3/141.
[4] BUCCI, Eugênio. Sobre ética e imprensa.
São Paulo: Companhia das Letras, 2000. 156. Apud VIEIRA, Ana Lúcia Menezes.
Processo penal e mídia. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2003. p. 156.
[5] VIEIRA, Ana Lúcia Menezes. Processo penal
e mídia. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2003. p. 153.
[6] SUANNES, Adauto. Os fundamentos éticos do
devido processo penal. 2ª ed. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2004.
p. 181.
[7] Trata-se de um dos mais emblemáticos
casos de assassinato moral de inocentes, na dicção de Ana Lúcia Menezes Vieira.
Os responsáveis pela referida escola foram dados pela mídia como autores de
abusos sexuais contra crianças de classe média. A escola foi alvo de
depredação, seus proprietários tiveram que abandonar os empregos, e também não
podiam sair às ruas, porque corriam o risco de sofrer agressões em público, na
medida em que a imprensa divulgava suas fotos. O inquérito policial, no
entanto, acabou sendo arquivado por falta de elementos de informação que
evidenciassem a prática dos crimes sexuais.
[8] “O denominado crime do bar Bodega,
ocorrido no dia 10 de agosto de 1996, no interior de uma choperia localizada em
Moema, bairro nobre da cidade de São Paulo, no qual dois jovens da classe média
paulistana morreram, de forma brutal e desnecessária, comoveu a opinião pública
do Estado. Pressionada, 15 dias após o evento criminoso, a polícia apresentou
aqueles que seriam os responsáveis pela morte das vítimas: cinco jovens negros
e pobres, moradores da periferia da região da Grande São Paulo. Expostos à
imprensa como animais bravios, algemados e com placas dependuradas em seus
corpos, indicando números, foram fotografados, filmados e entrevistados por
dezenas de repórteres de rádio, tevês, jornais e revistas. No final do mês
passado, entretanto, foram colocados em liberdade, pois o Ministério Público
não encontrou suficiência de elementos de prova nos autos, no sentido de
indicar suas participações no crime e identificou sérios indícios de que teriam
confessado o delito sob os mais cruéis métodos de tortura. Parte da imprensa,
então, deu-se conta de que, mais uma vez, a exemplo do ocorrido recentemente no
chamado crime da Escola Base, embarcou em notícia de uma investigação infeliz
da polícia, que, salvo novas evidências em contrário, inicialmente identificou
inocentes como os verdadeiros autores do duplo latrocínio. (...)”. (SILVA,
Eduardo Araújo. O papel da imprensa no caso do Bar Bodega. Isto é, 4 dez. 1996,
p. 151. Apud VIEIRA, Ana Lúcia Menezes. Processo penal e mídia. São Paulo:
Editora Revista dos Tribunais, 2003. p. 169).
[9] Publicada no DOE de 27 de novembro de
1998.
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