quarta-feira, 16 de novembro de 2011

Artigo: SÚMULA VINCULANTE: HEROÍNA OU VILÂ?


por Daniel Neves

 1 – INTRODUÇÃO

                                           A Emenda Constitucional 45 trouxe algumas modificações que dizem respeito ao processo civil, dentre eles destacando-se a adoção, em definitivo e às claras, do instituto das súmulas vinculantes, ainda que de forma parcial e ainda pendente de sistematização. A intitulada Reforma do Judiciário passou a prever o instituto no art. 103-A, CF: “O Supremo Tribunal Federal poderá, de ofício ou por provocação, mediante decisão de dois terços de seus membros, depois de reiteradas decisões sobre a matéria constitucional, aprovar súmula que, a partir de sua publicação na imprensa oficial, terá efeito vinculante em relação aos demais órgãos do Poder Judiciário e à administração pública direta e indireta, nas esferas federal, estadual e municipal, bem como proceder à sua revisão ou cancelamento, na forma estabelecida em lei”.

                                               A modificação, conforme se nota na nova redação do dispositivo constitucional acima mencionado, adota sem rodeios a súmula vinculante, limitando-a, entretanto, a espécie de objeto da demanda – matéria constitucional – e por conseqüência lógica ao órgão máximo de nossa estrutura judiciária – Supremo Tribunal de Justiça. As limitações demonstram que a modificação constitucional ainda não consagrou definitivamente o instituto da súmula vinculante entre nós, mas de forma bastante clara acena para uma maior receptividade da idéia no âmbito legislativo constitucional. Será, ao menos, um bom teste prático de aplicação do instituto, o que poderá demonstrar o acerto ou erro dos defensores e críticos da adoção desse mecanismo vinculativo.[1]

                                               Digna de nota a observação de que a mudança caminha em rumo já indicado pelas modificações mais recentes de nosso Código de Processo Civil, que vêm cada vez mais valorizando a força das súmulas e mesmo das jurisprudências dominantes de nossos Tribunais, em especial os de superposição. São novidades que aumentam o poder do relator em decidir sozinho quaisquer recursos que tenham como objeto matéria já pacificada nos Tribunais, tais como a possibilidade do relator decidir de forma monocrática o conflito de competência quando houver jurisprudência dominante do Tribunal (art. 120, par. Único, CPC), dar ou negar provimento a qualquer recurso fundado em súmula ou jurisprudência dominante (art. 557, CPC) e em especial no agravo contra decisão denegatória de seguimento de Recurso Especial e Extraordinário (art. 545, CPC).[2]

                                   De qualquer forma, ainda não se possa afirmar peremptoriamente que o direito brasileiro adotou integralmente o instituto das súmulas vinculantes, a modificação constitucional certamente levantará questões que vem há muito tempo sendo discutidas pela melhor doutrina, tanto a favorável quando a contrária à adoção do instituto, sendo o momento propício de elencar, com necessárias remissões ao direito estrangeiro, os alegados benefícios e riscos que envolvem o tema das súmulas vinculantes, sempre com as ponderações que parecem mais acertadas.

2- AS PRINCIPAIS CRÍTICAS À ADOÇÃO DA SÚMULA VINCULANTE

2.1 – A separação de poderes

                                               Uma das maiores críticas que a súmula vinculante enfrenta é aquela relacionada com a divisão clássica dos poderes. Nessa visão, a adoção da súmula vinculante causaria uma inconcebível invasão do Poder Legislativo por parte do Poder Judiciário, ruindo assim a necessária divisão dos poderes, conforme vislumbrada por Montesquieu, como garantia básica da ordem democrática da nação.

                                               A construção doutrinária de Montesquieu teve o mérito de identificar os três poderes e demonstrar que essa divisão geraria um sistema de “freios e contrapesos” que serviria principalmente para possibilitar um maior controle do poder nas mãos do Estado, criando assim uma sistemática onde cada órgão exercesse suas competências e também o controle de um sobre o outro. A idéia clássica de separação de poderes era a de uma separação rígida, sem a permitir-se que as atividades típicas de um Poder pudessem ser desenvolvidas pelos demais.[3]

                                               Não há como se negar que a nossa Constituição Federal, pelo menos do ponto de vista formal, estabeleceu o sistema constitucional brasileiro em respeito ao princípio da separação dos três poderes. Indubitável, também, que o princípio integra as chamadas cláusulas pétreas, quando instituído no Texto Maior de 1988, no artigo 60, § 4º, III: “Art. 60, § 4º. Não será objeto de deliberação a proposta de emenda tendente a abolir: III – a separação dos Poderes”. Com fundamento nessa idéia nuclear há corrente doutrinária que entende ser a adoção das súmulas vinculantes inconstitucional, considerando agredir cláusula pétrea ao permitir que o Poder Judiciário passe a desenvolver atividade legislativa privativa de outro Poder da Federação.

                                               Ao editarem as súmulas e serem essas obrigatórias para os juízes de primeiro grau e para os Tribunais de segundo grau de jurisdição, restaria claro para essa corrente doutrinária que o Judiciário estará, ao editar regras com efeitos erga omnes e vinculativos, colocando essas súmulas ao lado da lei, conferindo-lhes característica particulares dessa, quais sejam, a generalidade e a força obrigatória.[4] Assim sendo, o Judiciário estaria na verdade legislando, o que, pelo sistema de tripartição dos poderes, não pode ser permitido.

                                               Essa interferência de poderes foi explorada, com a costumeira genialidade, por Evandro Lins e Silva: “A independência recíproca dos Poderes pressupõe, como é óbvio, que cada um deles exerça uma função exclusiva; caso contrário, haveria superposição funcional. A função precípua e exclusiva do Poder Legislativo, como estabelecido desde os primórdios do regime democrático moderno, é a de ditar as leis, entendidas como expressão da vontade geral do povo. Ora, a súmula com efeito vinculante absoluto para os juízes de primeira instância significa a introdução de um sucedâneo da lei em nosso sistema jurídico, produzindo a superposição ou conflito de atribuições entre os Poderes Legislativo e Judiciário”[5]

                                               São esses, portanto, os pontos centrais das críticas à adoção da súmula vinculante à luz da teoria da separação de poderes. Necessária a análise dos contra argumentos a essa tese. O principal ataque que certos doutrinadores, defensores da súmula vinculante, fazem a essa crítica é a de que essa separação de poderes deve ser entendida de uma maneira menos rígida do que aquela vislumbrada por Montesquieu e desejada por aqueles que calcam a crítica maior à adoção da súmula vinculante em tal instituto constitucional.

                                               A rigidez de tal divisão não mais seria compatível com os nossos tempos e menos ainda como o nosso ordenamento. Sendo inegável que os Poderes devem manter independência em relação uns aos outros, por certo também devem interagir, sob pena do Estado não conseguir governar em sua plenitude, com nítido prejuízos dos Poderes considerados isoladamente. O exercício de algumas funções características a outros poderes seria então além de permitida, necessário ao bom andamento dos três Poderes e do Estado como um todo.[6]

                                               De tal maneira que, hoje em dia, a presença de Poderes exercendo atividades que não fazem parte de sua função precípua pode ser constatada em diversas oportunidades, passando a ser até mesmo uma exigência prática para o bom funcionamento estatal. Percebe-se facilmente esse desempenhar atípico de função quando o Poder Legislativo, com o auxílio do Tribunal de Contas, tem o poder de fiscalizar toda a Administração; quando se concede ao Judiciário poder de auto reger-se através de seus Regimentos, ou ainda quando o Executivo edita sucessivas medidas provisórias - prática odiosa, diga-se de passagem - com profundo caráter legislativo. Esses são apenas alguns exemplos entre muitos presentes[7], que demonstram não dever ser o fenômeno da separação dos Poderes algo que proíba, a priori, o desenvolvimento de alguma função legislativa e em algum grau, por parte do Poder Judiciário.

                                               Não parece, entretanto, que a adoção das súmulas vinculantes cause qualquer afronta a divisão dos Poderes, por não se confundir a atividade judicial de criação de súmulas com a atividade legislativa de formulação de normas. Para aqueles que vêm agressão à separação de poderes, não resta dúvida de que a atividade do juiz, adotando-se a súmula vinculante, é a de legislar. Nesse caso “estariam os Tribunais ditando uma interpretação autêntica, com validade geral e abstrata, de acolhimento obrigatório em todo o país pelos juízes e pelos poderes públicos. Ocorre que non exemplis sed legibus judicandum est.”[8] A conclusão, entretanto, não parece ser a mais acertada.

                                   Muito embora se deva admitir que a súmula vinculante trará como consequência direta de sua aplicação uma nova modalidade de posicionamento dos Tribunais a respeito da aplicação de determinada norma jurídica com caráter genérico e obrigatório, não é correto afirmar que os Ministros dos Tribunais Superiores, ao promulgar essas súmulas, estariam funcionando como verdadeiros juízes legisladores.[9] Não será dado a esses magistrados o poder de inaugurar a ordem jurídica, criando direitos e deveres, como ocorre com o legislador. Os magistrados estarão sempre limitados a questões que porventura cheguem a seu conhecimento por meio de sucessivas demandas judiciais, cabendo aos juízes somente a função de unificar interpretações conflitantes, dando um entendimento coeso a respeito da aplicação e interpretação da norma.

                                               Diante dessa constatação parece perfeita a conclusão do prestigiado processualista Cândido Rangel Dinamarco ao enfrentar o problema quando diz: “Como já se viu, as normas para as quais se pretende qualificar os juízes não dispõem de todo o caráter de generalidade e abstração que supostamente faria deles autênticos legisladores. Como dito, a eficácia vinculante de decisões judiciárias, seja pelo que já existe no sistema ou pelo que se propôs implantar de jure condendo, situa-se num plano intermediário entre o abstrato da lei e o concreto das decisões em casos concretos.”[10]

                                                O problema, portanto, está colocado. Considerando a divisão de poderes como uma característica fundamental de nosso sistema de governo, inclusive a considerando como cláusula pétrea, ou seja, imodificável mesmo por emenda constitucional, e acreditando que a adoção das súmulas vinculantes possa se assemelhar à atividade legislativa, não haveria como se admitir a adoção da súmula vinculante. Para os defensores de tal entendimento, dando efeito erga omnes e vinculativo às súmulas editadas pelos ministros dos Tribunais Superiores se verificaria no caso concreto uma interferência do Judiciário no Legislativo, já que essas súmulas, com caráter geral e de obrigatoriedade, em muito se assemelhariam à própria lei, tarefa, dentro dessa visão, exclusiva do Poder Legislativo.

                                               Encarando o fenômeno de um ponto de vista diametralmente oposto, a conclusão alcançada seria a de que o princípio da separação de poderes deve ser entendido de maneira mais flexível, não sendo correto dizer que a edição das súmulas vinculantes feriria esse conceito. A flexibilização dessa separação, verificada em inúmeros exemplos ocorrentes nos dias atuais, seria o maior exemplo disso. Além disso, e principalmente, restaria claro que, por não se tratar de inauguração da ordem jurídica, a atividade de sumular entendimentos, ainda que com força vinculativa, não se confundiria em sua integralidade com a atividade legislativa.

2.2 – Engessamento do direito

                                               Outra feroz crítica que se faz às súmulas vinculantes em nosso país é a de que sua adoção levaria a um engessamento do direito, já que com a cristalização das posições jurisprudenciais dos Tribunais Superiores o direito perderia sua mobilidade, principal característica atribuída ao Poder Judiciário quando interpreta as normas editadas pelos outros Poderes, em especial no tocante às decisões proferidas pelos juízes de primeiro grau de jurisdição.

                                               Já não é de hoje esse medo do engessamento do direito. Já em 1963, quando foi editada a primeira súmula do antigo Tribunal Federal de Recursos, o Ministro Hahnemann Guimarães já “receava a estagnação da jurisprudência com a tendência a manter a submissão dos casos futuros, por comodismo ou por uma espécie de fetiche, ao precedente, como, por exemplo, no direito anglo-saxão”.[11] Como visto, a preocupação já vem de longa data, antes mesmo de se cogitar dar eficácia obrigatória e vinculante às súmulas.

                                               Como é de conhecimento geral essas preocupações não vieram a se confirmar, sendo que as súmulas como hoje são, funcionando como paradigma da jurisprudência assentada dos tribunais, não ocasionou a tão temida ossificação do Direito. O problema ressurge agora com mais intensidade, acreditando parcela da doutrina que uma vez atribuindo-se caráter vinculativo às súmulas, a petrificação do Direito seria inevitável e extremamente prejudicial à melhor qualidade da prestação jurisdicional.

                                               Não há como se deixar de admitir que o Direito é uma ciência viva, que se modifica conforme as mudanças sociais, políticas, e econômicas. Não há, portanto, como se ossificar o Direito, permanentemente em evolução. Não menos verdade que muito embora o Direito sempre seja modificado, ao sabor dos tempos, o mesmo não ocorre com a lei material. A dificuldade em se modificar um estatuto legal inviabiliza completamente uma espera por parte dos juízes pelas modificações legislativas, por vezes sendo obrigados a flexibilizar ao máximo a norma para que a mesma se coadune com as  exigências do tempo vivido no momento da prolação da decisão. Assim, resta ao juiz a interpretação das normas à luz das condições do tempo no qual ocorre o fato de direito material.[12]

                                               Daí então surge o problema. Se ao modificar a lei encontramos tamanha dificuldade, e sendo a súmula aparelhada à lei, teríamos que supor que a mesma dificuldade seria constatada quando necessária a modificação ou revogação de súmula. Estaria morto o melhor caminho para a mudança de um entendimento caduco; a das decisões de primeiro grau e de tribunais de segundo grau, que levando em vista novas condições, modificam a jurisprudência, adaptando o Direito a uma nova realidade.[13]

                                               A preocupação é nobre, mas é preciso registrar que o próprio art. 103-A aponta expressamente para a possibilidade do Tribunal revisar ou cancelar a súmula, de forma a evitar a temida estagnação do Direito. Apesar da necessidade de lei para regulamentar os aspectos procedimentais, o art. 103-A, § 2º, CF, já atribui competência para a instauração de tal procedimento de revisão ou revogação de súmulas aos atuais legitimados à propositura da ação direita de inconstitucionalidade. Ainda que se possa discutir a efetiva eficácia de tal previsão, ao menos deve se reconhecer a preocupação do legislador com o indesejável efeito de ossificação do Direito.

                                               Paralelamente a essa discussão, alguns doutrinadores  acreditam que esse engessamento do Direito também aniquilará o poder criativo do juiz. Segundo essa concepção o julgador, obrigado a seguir um entendimento que não é seu, vindo de cima para baixo, se veria compelido a como uma “máquina”, carimbar com o selo vinculante suas decisões. Estar-se-ia, então, como chamam alguns críticos da súmula vinculante, colocando camisas-de-força nos juízes, os privando de sua criatividade.[14]

                                               Não parece ser essa a mais correta visão acerca do fenômeno. Primeiramente, o juiz ainda teria a obrigatoriedade de verificar se aquela súmula é cabível ao caso concreto em particular. A idéia de “carimbo com o selo vinculante” não parece correta, cabendo a todos os magistrados a cuidadosa e retida análise acerca do cabimento ou não da súmula ao caso concreto.[15]

                                               Por outro lado, os juízes de primeira instância devem estar preocupados com teses jurídicas novas, que são tantas em nosso dia a dia jurídico, e não com entendimentos já assentados. O processo não pode servir de palco para experimentos por parte do juiz. Posições que conflitem com o entendimento majoritário - já fixado em inúmeros processos pelos Tribunais Superiores - não podem ser vistas com bons olhos pelo Judiciário. Naqueles processos análogos a outros, onde a jurisprudência já se posicionou, deve o juiz decidir da maneira já assentada, ainda que fazendo constar seu entendimento particular contrário (como, aliás, já ocorre mesmo sem a súmula vinculante), deixando para as novas teses jurídicas ou mesmo para aquelas onde não há ainda posição consolidada, todo o seu poder criativo.[16]

                                               Os que consideram que a súmula vinculante irá de fato engessar o Direito, não aceitam nem as considerações de que na common law esse sistema seria o utilizado e o Direito norte-americano está em constante modificação. Tem alguma razão nesse pensamento, já que o sistema da stare decisis não é tão rígido quanto possa parecer, e exatamente por essa razão é possível a evolução do Direito.[17]

                                               No tocante ao sistema da common law, Charles  D. Cole[18]  informa não ser tão imprescindível o respeito a um precedente pelo juiz de primeira instância. Segundo esse autor, o juiz de primeira instância não teria poder para revogar um precedente anterior, mas percebendo que o precedente a ser usado no caso em particular, tiver sido muito desgastado com o passar do tempo, ou mesmo por outro casos precedenciais, poderá decidir em confronto com o precedente. Por certo, poderá a parte que sair derrotada alegar erro naquele decisório por ter deixado de aplicar certo precedente, mas a realidade é que não se nota um respeito cego aos precedentes na praxe forense norte-americana.

                                               Conclui-se, portanto, que “a doutrina do stare decisis já não é mais aplicada rigidamente nos Estados Unidos, e mesmo na Inglaterra vem se tornando mais flexível.”[19] Nem se cogita falar, portanto, em qualquer punição ao juiz que se distancia do precedente, a não ser a reforma de sua decisão quando esse distanciamento não for justificado.

                                               Muito embora seja necessário considerarem-se as profundas diferenças entre os dois sistemas, não sendo, portanto, cabível a argumentação de que o engessamento do Direito não ocorreria por não ser tal fenômeno verificado no direito norte-americano, parece que esse receio apontado pelos críticos da súmula vinculante não pode vingar. Os meios para modificação de uma súmula serão, portanto, estabelecidos em lei, o que nos preveniria da tal ossificação do direito.[20] Preferível seria ampliar a legitimidade para a instauração do procedimento de revisão de súmulas, conferindo a norma infraconstitucional a ser formulada para regulamentar procedimental tal pedido incluir entre os legitimados a entidade representativa dos juízes, AMB, e dos advogados, OAB. Também seria interessante que os próprios tribunais de segunda instância, também pudessem pleitear a revogação de uma súmula. A simples determinação de mecanismos de revogação das súmulas, teria o mérito de impedir essa ossificação. Além desses legitimados, não podem ser esquecidos os próprios ministros, que, observando ter sido o entendimento modificado, poderiam revogar ou modificar suas próprias súmulas.

                                               Ademais, poderiam os juízes de primeira instância expor as razões que os levam a divergir do entendimento sumulado, mas decidir conforme àquela súmula, em razão de seu cunho obrigatório. Tratando-se de casos isolados, o entendimento manifestado pelo juiz de primeira instância nunca prevaleceria. Já num outro panorama, em que muitas fossem as decisões combatendo o entendimento consolidado em súmula, a própria magistratura, através de seus órgãos de representação, teria meios para sua revisão ou revogação.[21]

                                               Essa atitude dos juízes de primeiro grau não seria conflitante com a obrigatoriedade das súmulas, pois decidiriam conforme a súmula, apenas deixando consignado seu entendimento particular contrário àquele já consolidado a respeito da aplicação e interpretação de determinada norma jurídica. Por outro lado, não estaria tolhida a liberdade dos juízes para se manifestarem contra o entendimento consolidado, de modo que, se realmente esse novo entendimento fosse encampado por grande número de magistrados, e mesmo juristas, o antigo entendimento poderia vir a se modificado. Agindo dessa forma, os julgadores de primeiro grau estariam ao mesmo tempo cumprindo a lei (força obrigatória da súmula) e lutando contra a tão temida ossificação do Direito.

2.3 – A autonomia do juiz

                                               Tema muito ligado ao tratado no item anterior é aquele relacionado à autonomia do juiz em sua atividade jurisdicional. Para os críticos à adoção da súmula vinculante a obrigatoriedade de aplicação das súmulas a processos com objeto análogo, vincularia o julgador de primeiro grau, retirando-lhe toda a autonomia, inerente ao próprio cargo. Seria, para esses críticos, o fim da independência dos juízes, preceito básico de nossa ordem constitucional. Institucionalizado estaria a estranha e indesejável figura do “juiz robótico”.

                                               O juiz, principalmente o de primeira instância, estaria obrigado a seguir não mais a lei, mas sim um entendimento majoritário de um tribunal que se encontra acima de sua posição por ordem hierárquica. Como primeira crítica, estaria que a eventual adoção da súmula vinculante modificaria profundamente os próprios fundamentos de nosso ordenamento jurídico.

                                               Ao julgar uma situação concreta o magistrado não mais estaria adstrito somente à lei e a Constituição (que nada mais é que uma lei, embora com força suprema).[22] Estaria agora também obrigado a decidir de uma determinada maneira no tocante à interpretação de norma jurídica específica, da mesma maneira que seus superiores hierárquicos já decidiram. Na verdade, esse juiz nada estaria a decidir; seus superiores já teriam decidido por ele.

                                               É conseqüência dessa conclusão a segunda crítica relativa a autonomia e independência do juiz. A independência do juiz deve ser encarada sob dois aspectos: interno e externo. O aspecto externo é aquele relativo a pressões vindas de fora do Poder Judiciário, seja das partes, de interessados, ou até mesmo dos outros dois Poderes. O juiz, naturalmente, deve ser imune a essas pressões externas, sob a pena de perder sua imprescindível imparcialidade para decidir o caso concreto, o que proporcionaria verdadeira afronta aos mais basilares princípios do Direito. Não é, porém, o único aspecto da independência do juiz que deve ser analisado.

                                               A independência do juiz também tem que ser interna, ou seja, não devem, e na verdade, não podem, existir pressões internas, provenientes dos próprios juízes, só que hierarquicamente superiores. O juiz deve ter liberdade total ao decidir o caso concreto, não se admitindo que tribunais superiores a ele no plano hierárquico, e mesmo seus companheiros de mesma instância possam influenciar em sua decisão.[23] Se o juiz não pode aceitar pressões externas ao Poder Judiciário, da mesma forma deve ocorrer com relação a pressões vindas de dentro desse próprio Poder.

Com relação à autonomia do juiz de primeira instância, não parece ser a adoção da súmula vinculante responsável pela criação de uma barreira intransponível à atuação com certa liberdade, mesmo obrigando que esse juiz decida conforme assentado nos tribunais superiores. É necessário encarar essa nova realidade através de uma relativização dessa autonomia, analisada por outro ângulo, que demonstrará que a tão temida falta de independência interna não ocorreria. De fato, essa somente se verificaria quando, em casos particulares, sofresse o juiz pressões para julgar conforme vontade de seus superiores, o que é possível ocorrer mesmo sem qualquer instituto vinculativo de súmulas editas pelos Tribunais.

Imprescindível registrar que as súmulas serviriam como norma de caráter geral, não se verificando essa pressão – externa ou interna -, tolhendo a independência do juiz no caso concreto, analisada de forma individualizada. O magistrado estaria somente respeitando entendimento consolidado, observando no caso concreto posicionamento para resolver a situação atualmente colocada sob seu julgamento, análoga àquelas que proporcionaram o surgimento das súmulas. Não haveria, portanto, aquela pressão particular, caso a caso, mas sim uma outra forma de pressão, genérica e aplicável a todos os juízes que estivessem na mesma posição, sem qualquer discricionariedade. O entendimento sempre no mesmo sentido não pode ser considerado como afronta à independência do juiz. Agressão à autonomia existiria se, em cada caso concreto, os superiores hierárquicos pressionassem os juízes para decidir conforme suas vontades pessoais, o que não ocorre quando o juiz é compelido a seguir entendimento sumulado.

Como síntese conclusiva do exposto cumpre registrar as palavras do magistrado Marco Antonio Botto Muscari, quando diz: “Na verdade, é tempo de pensarmos no jurisdicionado, naquele que paga tributos e faz jus a uma prestação jurisdicional célere e segura. Fala-se muito em independência do juiz, mas não se lembra que essa garantia é instrumental, ou seja, não constitui privilégio de uma categoria e sim garantia para o cidadão. Sob o pálio da independência do juiz não há como albergar-se conduta que vulnere os interesses dos jurisdicionados, impondo-lhes morosidade e incerteza”[24]

2.4 – Ofensa à obrigatoriedade de motivação das decisões – “selo com efeito vinculante”

                                               Para alguns doutrinadores críticos da adoção da súmula vinculante, o instituto viria a constituir a lei do menor esforço,[25] dispensando os juízes de motivarem suas decisões, bastando para fundamentá-las apenas a menção a determinada súmula.[26] Sob essa perspectiva os juízes dariam um selo com efeito vinculante e assim decidiriam, sem maiores preocupações com a exigência constitucional prevista pelo art. 93, IX, do Texto Maior.

                                               O temor demonstrado por tal parcela da doutrina é insustentável, não sendo possível pensar na atividade do juiz como uma mera atividade mecânica, mesmo se adotada a súmula vinculante. O julgador deverá, antes de aplicar determinada súmula ao caso concreto, examinar com cuidado e retidão se naquela decisão é cabível a aplicação da súmula. Uma vez assim procedendo, e chegando a conclusão que deve utilizar-se da súmula, deve fundamentar sua decisão, explicitando os motivos que o levaram a considerar aquela súmula aplicável ao caso concreto. Ademais, a matéria fática sempre seria apreciada pelo juiz, dependendo de sua valoração individual no caso colocado à sua apreciação, que naturalmente deverá justificar suas opções quando ao conjunto fático da demanda.

                                               Seria como hoje em dia ocorre quando o juiz aplica súmula, que mesmo não tendo caráter obrigatório, tem caráter persuasivo, não se abstendo de motivar sua decisão quando faz uma simples menção à súmula, dando essa como fundamento de decidir. Deve o magistrado fundamentar sua decisão, explicitando o porque da utilização de determinada súmula após a fixação do conjunto fático da demanda. Já hoje em dia, se não observadas essas formalidades, a decisão será considerada nula por ofensa ao princípio da motivação das decisões judiciais, em nada se modificando esse panorama com a adoção do efeito vinculativo às súmulas.

                                               Vê-se a importância da fundamentação dos pronunciamentos judiciais decisórios que o próprio Texto Maior, em seu artigo 93, inciso IX, determinou a obrigatoriedade dessa fundamentação, sendo que sua inocorrência, com ou sem a súmula vinculante, deve acarretar a nulidade absoluta da decisão. Logo, se o magistrado apenas menciona a súmula como razão de decidir - seja vinculante ou não - faltará a essa decisão a necessária fundamentação, sendo, portanto, passível de anulação.[27]

                                               Conclui-se que o argumento utilizado de que o advento da súmula vinculante funcionaria como afastamento da obrigatoriedade de fundamentação das decisões não pode ser considerada como uma crítica válida a tal adoção no direito pátrio.

3 – PRINCIPAIS BENEFÍCIOS DA SÚMULA VINCULANTE.

3.1. – A igualdade jurídica

                                               O artigo 5º, caput e o inciso I da CF de 1988, estabelecem que todos são iguais perante a lei, constituindo a igualdade como garantia constitucional, assegurando-se a todos uma paridade no tratamento. No atual estágio da ciência jurídica – em especial na área do direito constitucional – o principio da paridade entre as partes não é mais tratado como sendo uma característica estática, com profundo caráter formal e sem qualquer preocupação com as especialidades do caso concreto. Contemporaneamente busca-se uma igualdade real, que será obtida por meio de um tratamento desigual para os objetivamente diferentes, na medida de suas desigualdades. Somente assim estará superada a ultrapassada idéia de igualdade meramente formal, por meio da obtenção de uma igualdade substancial.[28]

                                               Ao se pensar na igualdade prevista no dispositivo constitucional mencionado deve-se ampliar seu campo de atuação, atribuindo-lhe a maior abrangência possível para que se verifique tanto nos casos de direito material como também nos casos de direito processual. Teríamos, portanto, que verificar o princípio da isonomia presente tanto nas relações jurídicas materiais como nas relações jurídicas processuais, e mais do que isso, no resultado obtido pelo processo, que dependerá da aplicação e interpretação da norma geral ao caso concreto.

                                               Dentro do âmbito processual vários são os dispositivos existentes em nosso ordenamento que buscam a efetiva isonomia, tratando diferentemente os desiguais, como, por exemplo, na gratuidade de acesso à justiça, ou ainda os prazos diferenciados previstos nos arts. 188 e 191, ambos do Código de Processo Civil, concedendo prazos diferenciados para a Fazenda Pública e para os litisconsortes passivos com patronos diferentes. Esse são apenas alguns exemplos que, dentre vários outros, tentam conferir no processo um tratamento de paridade real entre as partes, considerando suas próprias diferenças.

                                               Ocorre, entretanto, que não basta que as normas processuais e materiais tratem com igualdade as partes, sendo necessário que tal igualdade também se verifique na aplicação de tais normas, com conseqüência no resultado do processo. Assim, não é saudável à vida judiciária brasileira que juízes – de órgão singular ou colegiado -  cheguem a conclusões diametralmente opostas quando analisem casos materiais análogos ou idênticos. Esse tratamento diferenciado para pessoas em situação igual, gera uma ofensa ao princípio da isonomia.[29]

                                               Resta claro que o princípio da isonomia deve ser observado indiscriminadamente por todos os três Poderes. Assim, o Legislativo, ao exercer sua função precípua, a de criar a lei, deve naturalmente estar atento a esse princípio. Mas não só ele; também o Judiciário deve zelar pelo princípio ao julgar as demandas, ou seja, ao aplicar o direito ao caso concreto. Pensamento diverso nos levaria a conclusão de ser permitido ao Poder Judiciário desrespeitar o próprio texto constitucional, o que, por óbvio, é inconcebível, já que é dele que se espera a tutela e aplicação do Texto Maior.[30]

                                               Conforme ensina o eminente processualista José Ignácio Botelho de Mesquita, a “uniformidade contemporânea é uma exigência óbvia da igualdade de todos perante a lei. Não será igual para todos a lei que, para alguns, seja interpretada num sentido e, para outros, seja interpretada em sentido oposto. A unidade do sentido da lei é pressuposto da igualdade perante a lei. Por essa razão, constitui imperativo constitucional e dever indeclinável dos tribunais uniformizar a sua própria jurisprudência.”[31]

                                               É conclusão irrefutável que o fato de haver interpretações díspares de situações análogas levadas ao conhecimento do Poder Judiciário é altamente prejudicial tanto aos jurisdicionados que procuram esse poder para tutelar seus interesses como também ao próprio Poder Judiciário, que acaba se vendo desprestigiado frente a todos como instituição já que não consegue estabelecer uma unidade, decidindo de forma coesa. Não há como negar que a adoção da súmula vinculante viria a sanar essa problemática, passando a tratar, de forma acertada ou errada, com isonomia os jurisdicionados. [32]

                                               Fica claro que no concernente ao Poder Judiciário o desencontro de decisões proferidas em casos análogos, se já causam mal estar entre os operadores do direito, ainda pior impressão deixam entre aqueles que não entendem perfeitamente os trâmites processuais e mesmo a possibilidade legal para tais divergências ocorrerem. É nefasta a consequência para o Poder Judiciário, considerando-se que tais desencontros levam a população em geral a um ter um total descrédito com relação à própria distribuição de justiça.

                                               Tomemos um exemplo das maléficas conseqüências geradas pro essa diversidade de entendimentos da mesma questão jurídica. A problemática acerca da executividade ou não do contrato de abertura de crédito.[33] Há muito tempo o Segundo Tribunal de Alçada Civil do Estado de São Paulo – hoje órgão extinto em razão da Emenda Constitucional nº 45 - vinha decidindo acerca da executividade de tal contrato, restando inclusive a matéria sumulada. Ocorre, entretanto, que o Superior Tribunal de Justiça, em razão de reiteradas decisões, fixou entendimento de que o contrato de abertura de crédito não pode ser considerado como título de crédito, também sumulando a questão (Súmula 233). A parte que tinha em seu poder um contrato de abertura de crédito chegava a um beco sem saída. Se ingressasse com a ação de execução, quando o processo chegasse à Brasília a inicial seria considerada inepta e se, por outro lado, atento a orientação do STJ, ingressasse com monitória, a inépcia seria declarada em segunda instância. A situação entre os juízes de primeiro grau era caótica, recebendo os jurisdicionados, em idênticas posições jurídicas, tratamentos diametralmente opostos. Não há dúvida que tal situação constituía-se em afronta ao princípio da isonomia[34], o que felizmente restou superado pela adoção do entendimento do Tribunal Superior pelos juizes hierarquicamente inferiores. Mas durante o largo lapso temporal de incerteza o estrago já havia sido feito.

                                               No direito argentino, por exemplo, é tamanha a preocupação com o Poder Judiciário como instituição forte, unificada e coerente, que parte da doutrina, mesmo admitindo não haver uma obrigação legal de respeitarem-se em grau inferior as decisões da Corte Suprema, afirma haver um dever institucional por parte dos juízes nesse sentido. Para essa corrente, decisões divergentes enfraquecem o Poder Judicial frente aos jurisdicionados, fazendo com que sua supremacia e o próprio respeito a ele devido fiquem abalados.[35]

                                               Ademais, para a corrente argentina do “sometimiento condicionado como deber institucional”, a uniformização de decisões por parte do Judiciário traz consequências positivas à ordem institucional como um todo. Toda a ordem das instituições repousa sobre a interpretação dada à lei material por parte do Judiciário. Se essa resposta é unificada, se terá uma maior estabilidade das instituições, já que os clientes desse Poder (os jurisdicionados) saberão como o problema jurídico concreto será resolvido. No contrário, a própria ordem institucional restaria abalada, em decorrência do que ficou conhecido na doutrina por “loteria judiciária”.[36]

                                               Por outro lado, o tratamento sem isonomia, tratando diferentemente pessoas que se encontram na mesma situação jurídica é extremamente prejudicial aos próprios jurisdicionados. Importante frisar aqui que, obviamente, devido à própria característica do Direito, decis&oti

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