segunda-feira, 24 de outubro de 2011

Artigo: AÇÃO PENAL NOS CRIMES CONTRA A LIBERDADE SEXUAL: BREVES CONSIDERAÇÕES.





por Rogério Sanches



Antes da Lei 12.015/09, o caput do art. 225 do CP ditava que a ação penal regra nos crimes contra a liberdade sexual era de iniciativa privada. Havia, no entanto, quatro exceções:

a) procedia-se mediante ação pública condicionada à representação se a vítima ou seus pais não podiam prover às despesas do processo, sem privar-se de recursos indispensáveis à manutenção própria ou da família (§1º, I, c.c. o § 2º);

b) procedia-se mediante ação pública incondicionada se o crime era cometido com abuso do poder familiar, ou da qualidade de padrasto, tutor ou curador (§ 1º);

c) procedia-se mediante ação pública incondicionada se da violência resultasse na vítima lesão grave ou morte (art. 223 do CP);

d) a ação penal era pública incondicionada, de acordo com a Súmula 608 do STF, quando o crime de estupro for praticado mediante o emprego de violência real (aplicando-se o mesmo ao atentado violento ao pudor).

Agora, com a reforma do Título VI do CP, a regra estabelece que a ação penal é pública condicionada, transformando-se em pública incondicionada quando a vítima é:

I – menor de 18 anos; ou
II – pessoa vulnerável.

Nos casos em que a ação penal de iniciativa privada passou para pública, devem os fatos anteriores ser descritos em queixa-crime, oferecida pela vítima, ou em denúncia, proposta pelo Ministério Público?

Certamente haverá aqueles que, norteados pelas regras do direito intertemporal no processo penal, lecionarão pela aplicação imediata da mudança, isto é, denúncia (não se observando o tempus regit actum).

Entendemos, com o devido respeito, que a ação penal, para os casos praticados antes da vigência da nova lei, deve continuar sendo privada (queixa-crime), vez que, do contrário, estar-se-ia subtraindo inúmeros institutos extintivos da punibilidade ao acusado (ex.: renúncia, perdão do ofendido, perempção etc.). A mudança da titularidade da ação penal é matéria de processo penal, mas conta com reflexos penais imediatos. Daí a imperiosa necessidade de tais normas (processuais, mas com reflexos penais diretos) seguirem a mesma orientação jurídica das normas penais. Quando a inovação é desfavorável ao réu, não retroage.

Aplicamos o mesmo raciocínio para os casos em que a ação pública condicionada passou a ser incondicionada.

Nas hipóteses de ação pública incondicionada que passaram para a regra (condicionada), entendemos que a análise exige separar duas situações:

a) se a inicial (denúncia) já foi ofertada, trata-se de ato jurídico perfeito, não sendo alcançado pela mudança. Não nos parece correto o entendimento de que a vítima deve ser chamada para manifestar seu interesse em ver prosseguir o processo. Essa lição transforma a natureza jurídica da representação de condição de procedibilidade em condição de prosseguibilidade. A lei nova não exigiu essa manifestação (como fez no art. 91 da Lei 9.099/1995);

b) se a incoativa ainda não foi oferecida, deve o MP aguardar a oportuna representação da vítima ou o decurso do prazo decadencial, cujo termo inicial, para os fatos pretéritos, é o da vigência da novel lei.

Por fim, qual a ação penal nos casos em que da violência resulta na vítima lesão grave ou morte?

Antes do advento da Lei 12.015/2009 era de ação penal pública incondicionada (podia e devia o Ministério Público atuar sem nenhuma manifestação da vítima).

Por força da atual redação (ou omissão) do art. 225, a ação penal passou a ser pública condicionada.

O Procurador-Geral da República, acolhendo manifestação da Subprocuradora-Geral da República, Deborah Macedo Duprat de Britto Pereira, ingressou com ADI (4.301), junto ao STF, solicitando o reconhecimento (inclusive liminar) da inconstitucionalidade do art. 225 do CP (sem redução de texto), para se admitir que a ação penal, no caso do estupro com resultado morte ou lesão corporal grave, seria pública incondicionada.

Três foram os fundamentos invocados: 1º) ofensa ao princípio da dignidade da pessoa humana; 2º) ofensa ao princípio da proteção deficiente (que nada mais significa que um dos aspectos do princípio da proporcionalidade); 3º) a possível extinção da punibilidade em massa nos processos em andamento (de estupro com resultado morte ou lesão corporal grave), porque passariam a exigir manifestação da vítima (sob pena de decadência).

Luiz Flávio Gomes discorda, argumentando: “A nova norma (do art. 225 do CP) é razoável e equilibrada. Andou bem em dispor que a ação penal, nos crimes sexuais previstos nos Capítulos I e II, seja, em regra, pública condicionada à representação da vítima. Nos crimes sexuais não existem interesses relevantes apenas do Estado. Antes, e sobretudo, também marcantes são os interesses privados (o interesse de recato, de preservação da privacidade e da intimidade etc.). O escândalo do processo, muitas vezes, só intensifica a ofensa precedente (gerando o que se chama, na Criminologia, de vitimização secundária). O legislador não ignorou esse aspecto (sumamente importante) da questão. Nada mais sensato, nos crimes sexuais em geral (e no estupro em particular), que condicionar a atuação do Ministério Público à manifestação de vontade da vítima. Imagine (por desgraça) um juiz, um procurador, um parlamentar etc. sendo vítima de um estupro. A publicidade que acarreta o processo pode potencializar (e normalmente potencializa) a ofensa. Pode ser que a privacidade seja melhor para a vítima (para que ela não sofra a vitimização secundária).

Tudo isso foi levado em conta na nova norma (que é sensata e proporcional). Não é ofensiva à dignidade da pessoa humana (ao contrário). Não espelha nenhuma deficiência protetiva (ao contrário). De outro lado, nos crimes sexuais, quando a vítima não tem interesse, o aspecto probatório resulta sensivelmente prejudicado. A conciliação dos interesses privados com o público é o melhor caminho nos crimes sexuais. Essa regra só foi excepcionada quando se trata de vítima menor de dezoito anos ou vulnerável (o que também é sensato).

A ação penal no crime de estupro com resultado morte ou lesão corporal grave, em síntese, é pública condicionada. Impossível aplicar o art. 101 do CP, por duas razões: 1ª) a norma do art. 225 do CP é especial (frente ao art. 101 que é geral); 2ª) a norma do art. 225 é posterior (o que afasta a regra anterior). Não vemos razão para alterar o quadro jurídico fixado pela Lei 12.015/2009. A tendência publicista do Direito não pode chegar ao extremo de ignorar complemente os interesses privados da vítima, quando o delito atinge a sua intimidade, que é um dos relevantes aspectos (que lhe sobra) da sua personalidade” (Estupro com Lesão Corporal Grave ou Morte: A Ação Penal é Pública Condicionada. Disponível em http://www.lfg.com.br - 28 setembro de 2009.).

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