por
Tathiane Piscitelli
O artigo 150, inciso VI, alínea a da
Constituição estabelece a não incidência de impostos sobre o “patrimônio, renda
e serviços” da União, Estados, Distrito Federal e Municípios. O objetivo é
garantir o equilíbrio entre os entes da Federação e, assim, assegurar a
manutenção da forma federativa de Estado. Tal imunidade ficou conhecida como
“imunidade tributária recíproca”, exatamente pela vedação da imposição de ônus
tributários, relacionados a impostos, de forma recíproca entre os entes.
Ao lado da alínea a do artigo 150, inciso VI,
a Constituição ainda estabelece duas regras relativas à imunidade recíproca. A
primeira está no parágrafo 2o desse mesmo artigo, que estende a não incidência
de impostos às autarquias e fundações instituídas e mantidas pelo Poder
Público, quanto ao “patrimônio, renda e serviços, vinculados a suas finalidades
essenciais ou às delas decorrentes”. Além disso, determina o parágrafo 3o que
essa mesma imunidade não se aplica ao patrimônio, renda e serviços que sejam
relacionados com a “exploração de atividades econômicas regidas pelas normas
aplicáveis a empreendimentos privados, ou em que haja contraprestação ou
pagamento de preços ou tarifas pelo usuário”.
A partir da redação de todos esses
dispositivos pode-se afirmar, de plano, que a imunidade recíproca desonera
entes da Federação, inclusive a Administração Indireta, na figura das
autarquias e fundações, do pagamento de impostos, desde que estejamos diante de
atividades relacionadas com a prestação de serviços públicos. Os casos em que a
Administração presta serviços ou realiza atividades sob o âmbito do direito
privado não estariam contemplados pela imunidade, especialmente por razões de
isonomia e, assim, garantia de tratamento igualitário entre os atores do
mercado.
Contudo, uma dúvida se coloca quando se trata
de avaliar a imunidade recíproca e seu possível alcance: como ficariam as
hipóteses em que há a prestação de serviços públicos mediante concessão, ou
mesmo pelas mãos de empresas públicas e sociedades de economia mista? Nesses
casos, porque se trata de prestação de “serviço público” a imunidade também
seria aplicável a tais entes da Administração Indireta? A pergunta é relevante,
na medida em que tais entidades atuam sob o regime de direito privado e, em
princípio, estariam excluídas da imunidade pela redação do parágrafo 3o do
artigo 150 da Constituição.
O Supremo Tribunal Federal avaliou essa
questão a partir de dois casos. O primeiro tomou em conta os serviços prestados
pela Empresa Brasileira de Correios e Telégrafos, os “Correios”, e o segundo,
cuja decisão foi dada no último dia 25 de agosto, avaliou a existência de
imunidade para a Companhia Brasileira de Docas do Estado de São Paulo, a
“Codesp”.
Quanto aos Correios, o Supremo Tribunal
Federal decidiu, em diversas ocasiões
(ACO’s 1095, 965, 811 e 765), que o fato de a ECT prestar serviços públicos
resulta na inexistência de atividade econômica em sentido estrito a ela
vinculada ou mesmo a persecução de lucro. Dessa forma, seria inaplicável a
limitação contida no artigo 150, parágrafo 3o da Constituição, a qual se
destinaria àquelas empresas públicas cujo objetivo fosse a obtenção de lucro,
nos termos das normas aplicáveis ao setor privado. Essa orientação, consolidada
no Supremo, acabou por ampliar a imunidade recíproca, já que não apenas as
autarquias e fundações seriam beneficiadas, mas também empresas públicas
prestadoras de serviços públicos – caso específico dos Correios.
Recentemente, o tema voltou à pauta do STF
pelo caso da Codesp, decidido no Recurso Extraordinário 253.472. O debate,
nessa hipótese, estava centrado no IPTU: a empresa, por gerir patrimônio da
União (i.e. as instalações do porto de Santos), poderia se beneficiar da
imunidade? A resposta a essa questão passava não apenas pela interpretação do
instituto da imunidade recíproca e respectivas limitações, mas, também, pela
análise do fato gerador do IPTU, disciplinado nos artigos 32 e seguintes do
Código Tributário Nacional.
De acordo com a redação desse dispositivo, a
incidência do IPTU decorre da propriedade, posse ou domínio útil de imóvel
localizado na zona urbana do Município. Por isso, em tese, o fato de os imóveis
serem de propriedade da União não impediria a incidência do imposto e, dessa
forma, inexistiria qualquer ofensa à imunidade tributária recíproca.
Essa orientação, contudo, não foi a que
prevaleceu. Para o Ministro Joaquim Barbosa, que conduziu a tese vencedora, as
atividades desenvolvidas pela Codesp não visam, preponderantemente, ao lucro.
Ao contrário, o imóvel atende a necessidades públicas e, por isso, deve ser
imune ao pagamento do IPTU.
Mais uma vez, portanto, o Supremo Tribunal
Federal se manifestou pela prevalência da finalidade do ente da Administração
Indireta, em detrimento da sua forma constitutiva: não importa se se trata de
autarquia, fundação, empresa pública ou sociedade de economia mista. O dado
relevante a se considerar, que determina a aplicação da imunidade recíproca, é
o objeto perseguido pelo ente; caso estejamos diante da prestação de serviços
públicos, haverá a imunidade, ficando, assim, afastada a aplicação das
limitações contidas no artigo 150, parágrafo 3o da Constituição.
Por fim, vale diferençar a presente discussão
daquela que ainda se encontra em julgamento no Supremo, no Recurso
Extraordinário 434.251, em que se debate a eventual imunidade de empresa que
ocupa área de propriedade da União com intuito de desenvolver atividade com
fins lucrativos. O julgamento foi interrompido no último dia 26 de agosto, por
pedido de vista da Ministra Carmen Lúcia. A situação, aqui, é diferente do caso
da Codesp, na medida em que no RE 434.251 se está diante de uma empresa que, de
forma indubitável, possui finalidade lucrativa. Caso o Supremo mantenha a mesma
orientação firmada em relação à Codesp – o que é esperado – a decisão deverá
ser no sentido de não reconhecer a imunidade, estritamente porque a empresa
presta serviços visando ao lucro, afastando-se, assim, da finalidade pública
que seria o lastro para a existência de imunidade recíproca.
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