por
Rogério Sanches
Antes da Lei 12.015/09, o caput do art. 225
do CP ditava que a ação penal regra nos crimes contra a liberdade sexual era de
iniciativa privada. Havia, no entanto, quatro exceções:
a) procedia-se mediante ação pública
condicionada à representação se a vítima ou seus pais não podiam prover às
despesas do processo, sem privar-se de recursos indispensáveis à manutenção
própria ou da família (§1º, I, c.c. o § 2º);
b) procedia-se mediante ação pública
incondicionada se o crime era cometido com abuso do poder familiar, ou da
qualidade de padrasto, tutor ou curador (§ 1º);
c) procedia-se mediante ação pública
incondicionada se da violência resultasse na vítima lesão grave ou morte (art.
223 do CP);
d) a ação penal era pública incondicionada,
de acordo com a Súmula 608 do STF, quando o crime de estupro for praticado
mediante o emprego de violência real (aplicando-se o mesmo ao atentado violento
ao pudor).
Agora, com a reforma do Título VI do CP, a
regra estabelece que a ação penal é pública condicionada, transformando-se em
pública incondicionada quando a vítima é:
I – menor de 18 anos; ou
II – pessoa vulnerável.
Nos casos em que a ação penal de iniciativa
privada passou para pública, devem os fatos anteriores ser descritos em
queixa-crime, oferecida pela vítima, ou em denúncia, proposta pelo Ministério
Público?
Certamente haverá aqueles que, norteados
pelas regras do direito intertemporal no processo penal, lecionarão pela
aplicação imediata da mudança, isto é, denúncia (não se observando o tempus
regit actum).
Entendemos, com o devido respeito, que a ação
penal, para os casos praticados antes da vigência da nova lei, deve continuar
sendo privada (queixa-crime), vez que, do contrário, estar-se-ia subtraindo
inúmeros institutos extintivos da punibilidade ao acusado (ex.: renúncia,
perdão do ofendido, perempção etc.). A mudança da titularidade da ação penal é
matéria de processo penal, mas conta com reflexos penais imediatos. Daí a
imperiosa necessidade de tais normas (processuais, mas com reflexos penais
diretos) seguirem a mesma orientação jurídica das normas penais. Quando a
inovação é desfavorável ao réu, não retroage.
Aplicamos o mesmo raciocínio para os casos em
que a ação pública condicionada passou a ser incondicionada.
Nas hipóteses de ação pública incondicionada
que passaram para a regra (condicionada), entendemos que a análise exige
separar duas situações:
a) se a inicial (denúncia) já foi ofertada,
trata-se de ato jurídico perfeito, não sendo alcançado pela mudança. Não nos
parece correto o entendimento de que a vítima deve ser chamada para manifestar
seu interesse em ver prosseguir o processo. Essa lição transforma a natureza
jurídica da representação de condição de procedibilidade em condição de
prosseguibilidade. A lei nova não exigiu essa manifestação (como fez no art. 91
da Lei 9.099/1995);
b) se a incoativa ainda não foi oferecida,
deve o MP aguardar a oportuna representação da vítima ou o decurso do prazo
decadencial, cujo termo inicial, para os fatos pretéritos, é o da vigência da
novel lei.
Por fim, qual a ação penal nos casos em que
da violência resulta na vítima lesão grave ou morte?
Antes do advento da Lei 12.015/2009 era de
ação penal pública incondicionada (podia e devia o Ministério Público atuar sem
nenhuma manifestação da vítima).
Por força da atual redação (ou omissão) do
art. 225, a ação penal passou a ser pública condicionada.
O Procurador-Geral da República, acolhendo
manifestação da Subprocuradora-Geral da República, Deborah Macedo Duprat de
Britto Pereira, ingressou com ADI (4.301), junto ao STF, solicitando o
reconhecimento (inclusive liminar) da inconstitucionalidade do art. 225 do CP
(sem redução de texto), para se admitir que a ação penal, no caso do estupro
com resultado morte ou lesão corporal grave, seria pública incondicionada.
Três foram os fundamentos invocados: 1º)
ofensa ao princípio da dignidade da pessoa humana; 2º) ofensa ao princípio da
proteção deficiente (que nada mais significa que um dos aspectos do princípio
da proporcionalidade); 3º) a possível extinção da punibilidade em massa nos
processos em andamento (de estupro com resultado morte ou lesão corporal
grave), porque passariam a exigir manifestação da vítima (sob pena de
decadência).
Luiz Flávio Gomes discorda, argumentando: “A
nova norma (do art. 225 do CP) é razoável e equilibrada. Andou bem em dispor
que a ação penal, nos crimes sexuais previstos nos Capítulos I e II, seja, em
regra, pública condicionada à representação da vítima. Nos crimes sexuais não
existem interesses relevantes apenas do Estado. Antes, e sobretudo, também
marcantes são os interesses privados (o interesse de recato, de preservação da
privacidade e da intimidade etc.). O escândalo do processo, muitas vezes, só
intensifica a ofensa precedente (gerando o que se chama, na Criminologia, de
vitimização secundária). O legislador não ignorou esse aspecto (sumamente
importante) da questão. Nada mais sensato, nos crimes sexuais em geral (e no
estupro em particular), que condicionar a atuação do Ministério Público à
manifestação de vontade da vítima. Imagine (por desgraça) um juiz, um
procurador, um parlamentar etc. sendo vítima de um estupro. A publicidade que
acarreta o processo pode potencializar (e normalmente potencializa) a ofensa.
Pode ser que a privacidade seja melhor para a vítima (para que ela não sofra a
vitimização secundária).
Tudo isso foi levado em conta na nova norma
(que é sensata e proporcional). Não é ofensiva à dignidade da pessoa humana (ao
contrário). Não espelha nenhuma deficiência protetiva (ao contrário). De outro
lado, nos crimes sexuais, quando a vítima não tem interesse, o aspecto
probatório resulta sensivelmente prejudicado. A conciliação dos interesses
privados com o público é o melhor caminho nos crimes sexuais. Essa regra só foi
excepcionada quando se trata de vítima menor de dezoito anos ou vulnerável (o
que também é sensato).
A ação penal no crime de estupro com
resultado morte ou lesão corporal grave, em síntese, é pública condicionada.
Impossível aplicar o art. 101 do CP, por duas razões: 1ª) a norma do art. 225
do CP é especial (frente ao art. 101 que é geral); 2ª) a norma do art. 225 é
posterior (o que afasta a regra anterior). Não vemos razão para alterar o
quadro jurídico fixado pela Lei 12.015/2009. A tendência publicista do Direito
não pode chegar ao extremo de ignorar complemente os interesses privados da
vítima, quando o delito atinge a sua intimidade, que é um dos relevantes
aspectos (que lhe sobra) da sua personalidade” (Estupro com Lesão Corporal
Grave ou Morte: A Ação Penal é Pública Condicionada. Disponível em
http://www.lfg.com.br - 28 setembro de 2009.).
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