O ministro Ayres Britto, do Supremo Tribunal
Federal (STF), votou nesta quinta-feira (6) pela derrubada da Emenda
Constitucional (EC) 62/2009, que criou um regime especial de pagamento de
precatórios (dívidas públicas reconhecidas judicialmente). A emenda foi
questionada na Corte por meio de quatro Ações Diretas de Inconstitucionalidade
(ADIs 4357, 4372, 4400 e 4425). Após o voto de Ayres Britto, relator da
matéria, o julgamento foi suspenso por um pedido de vista do ministro Luiz Fux.
A emenda constitucional foi questionada por
entidades como Conselho Nacional da Indústria (CNI), Conselho Federal da Ordem
dos Advogados do Brasil (OAB), Associação dos Magistrados Brasileiros (AMB),
Associação Nacional dos Membros do Ministério Público (Conamp), entre outras.
A primeira alegação de inconstitucionalidade
apresentada - de vício formal na maneira como a emenda foi votada no Senado -
foi acolhida integralmente pelo ministro Ayres Britto. No caso, o argumento é
de que o Senado não respeitou o devido processo legislativo, previsto no
parágrafo 2º do artigo 60 da Constituição Federal, que determina a discussão e
votação de emendas à Constituição em dois turnos, em cada casa do Congresso. A
violação do dispositivo constitucional teria ocorrido porque a discussão e votação
da matéria no Senado, tanto em primeiro quanto em segundo turno, ocorreram em
um único dia.
“Tenho que assiste razão aos autores”,
afirmou o relator. Ele registrou que, no dia 2 de dezembro de 2009, a proposta
de emenda que deu origem à EC 62 foi discutida e votada duas vezes pelo Senado,
em menos de uma hora. Segundo Ayres Britto, isso significa que o projeto, de
fato, foi submetido a somente um turno de discussão e votação.
“O artifício de abrir e encerrar, numa mesma
noite, sucessivas sessões deliberativas, não atende à exigência constitucional
da realização de uma segunda rodada de discussão e votação, precedida de
razoável intervalo até para a serenização de ânimos eventualmente exacerbados,
ao lado de amadurecimento das ideias”, frisou.
Para o ministro, ainda que a Constituição não
mencione o “preciso interstício” entre os dois turnos de discussão e votação de
uma emenda constitucional, “pode-se ajuizar, sem hesitação, que, no presente
caso, o interstício foi insuficiente à caracterização do segundo turno”. Assim,
ele considerou toda a EC 62 inconstitucional por vício formal.
Vícios
materiais
Em seguida, o relator passou a analisar, uma
a uma, as diversas alegações de vícios de inconstitucionalidade material
apontadas na EC 62.
Ele considerou inconstitucional a regra da
emenda que determina o pagamento preferencial de precatório de natureza
alimentícia, especificamente na data de sua expedição, a pessoas com 60 anos ou
mais (parágrafo 2º do artigo 100 da Constituição).
O ministro explicou que, por essa regra, uma
pessoa de 60 anos que acabou de ter seu precatório expedido receberá seu
crédito antes de uma pessoa de 80 anos que espere pelo pagamento de seu
precatório há mais de duas décadas. “A providência correta, à luz do princípio
isonômico, seria destinar preferência a todos que (e à medida que) completem 60
anos de idade na pendência de precatório de natureza alimentícia”, disse.
Fazenda
Pública
Ao se posicionar pela inconstitucionalidade
dos parágrafos 9º e 10º do artigo 100 da Constituição Federal, com as
alterações da EC 62, o ministro frisou que os dispositivos “chancelam” uma
compensação obrigatória do crédito a ser inscrito em precatório com débitos
perante a Fazenda Pública.
A AGU, disse Ayres Britto, informou que o
objetivo da norma seria o de impedir que os administrados recebam seus créditos
sem que suas dívidas perante o Estado sejam satisfeitas. Se é assim, revelou o
ministro, “o que se tem é um acréscimo de prerrogativa processual do Estado,
como se já fosse pouco a prerrogativa processual do Estado”.
“A via crucis do precatório passou a conhecer
uma nova estação, a configurar arrevezada espécie de terceiro turno
processual-judiciário, ou, quando menos, processual-administrativo, com a
agravante da não participação da contraparte privada”, disse o ministro.
“Depois de todo um demorado processo judicial em que o administrado vê
reconhecido seu direito de crédito contra a Fazenda Pública (muitas vezes de
natureza alimentícia), esta poderá frustrar a satisfação do crédito afinal
reconhecido”, completou.
Esse tipo de conformação normativa, mesmo que
veiculada por emenda à Constituição, afronta tanto o princípio dão separação
dos Poderes quanto da isonomia, frisou o relator.
Índice
de atualização
O ministro também se manifestou pela
inconstitucionalidade parcial do parágrafo 12 do artigo 100 da EC 62, que
determina a atualização dos valores devidos, até a conclusão do pagamento, pelo
índice oficial de remuneração básica da caderneta de poupança, com juros de
mora. Para Ayres Britto, o entendimento da Corte é no sentido de que os valores
de precatórios devem ser atualizados monetariamente, mas a emenda acabou por
artificializar o conceito de atualização monetária.
Ele explicou que a Constituição busca
proteger o bem jurídico, que passa a experimentar, com o tempo, uma
deterioração ou perda de substância. Segundo ele, deixar de assegurar a
continuidade desse valor real é, no fim das contas, desequilibrar a equação
econômico-financeira entre devedor e credor, “em desfavor do último”. O STF já
entendeu que o índice oficial da remuneração básica da caderneta de poupança
não reflete a perda de poder aquisitivo da moeda.
Com esse argumento, o ministro votou pela
inconstitucionalidade da expressão “índice oficial de remuneração básica da
caderneta de poupança”, constante do parágrafo 12 do artigo 100 da
Constituição, do inciso II do parágrafo 1º e do parágrafo 16, ambos do artigo
97 do ADCT (Ato das Disposições Constitucionais Transitórias).
Surrealismo
jurídico
Igualmente inconstitucionais foram
considerados o parágrafo 15 do artigo 100 da Carta Magna e o artigo 97 do Ato
das Disposições Constitucionais Transitórias (ADCT), ambos acrescidos pela
emenda. Eles definem os modelos de pagamento a serem adotados pela
Administração Pública para a execução dos precatórios, abrindo a possibilidade
de estender por até 15 anos a execução de tais determinações judiciais e
limitando os valores orçamentários para a quitação da dívida.
Para o relator, as normas contrariam a
autoridade das decisões judiciais e consistem em uma afronta direta ao
princípio da separação de Poderes e às garantias constitucionais de livre
acesso ao Poder Judiciário e razoável duração do processo. “Nesse cenário de
caricato surrealismo jurídico, o Estado se coloca muito acima da lei e da
Constituição”, tornando a função jurisdicional “mera atividade lúdica”,
ressaltou em seu voto.
Em relação ao artigo 97 do ADCT, Ayres Britto
destacou, ainda, que a norma prevê o pagamento de precatórios em ordem única e
crescente de valor, favorecendo “de forma desarrazoada”, os credores mais
recentes, em detrimento de quem já espera há mais tempo na fila. Além disso, considerou o ministro, o artigo
torna subjetivo o critério de escolha para o pagamento e prejudica a autonomia da
Justiça trabalhista, ao conferir apenas aos Tribunais de Justiça a
administração da conta especial de depósito dos valores para quitar a dívida.
“O regime especial veiculado pelo artigo 97
do ADCT é reverente à lógica hedonista de que as dívidas do Estado em face de
terceiros hão de ser pagas, em acentuada medida, quando e se o Poder Público
desejar”, concluiu Ayres Britto.
Ele considerou adequada a referência dos
autores das ADIs à EC 62 como a “emenda do calote”, visto que ela fere o
princípio da moralidade administrativa e leva muitos titulares de créditos a
“leiloarem” seu direito à execução de sentença judicial transitada em julgado.
FONTE:
STF
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