Rodrigo João Rosolim Salerno[1]
Com o advento do Novo Código
Civil, alicerçado nos princípios da eticidade, socialidade e operabilidade,
grande ressonância, tanto que consagrado na atual Codificação, obteve o
princípio da boa-fé contratual, previsto no art. 422, da Codificação Civil[2].
Segundo FLÁVIO TARTUCE, “Como se
sabe, o dispositivo do Código Civil em análise consagra o princípio da boa-fé
objetiva. Essa seria, para nós, a soma de uma boa intenção com a probidade e
com a lealdade. Desse modo, a expressão e que consta da norma, conjunção
aditiva por excelência, serve como partícula de soma entre uma boa fé
relacionada com intenção (boa-fé subjetiva) e a probidade”.[3]
No escólio de TERESA NEGREIROS, “(...) Trata-se da
consagração expressa do princípio segundo o qual as relações contratuais se
devem pautar não apenas pela autonomia e liberdade das partes, mas igualmente
pela lealdade e pela confiança”.[4]
Destarte, o art. 422, do Código
Civil traz ínsito às partes de uma relação jurídica o dever de adotarem
condutas probas e éticas, ou seja, “condutas guiadas pela boa-fé”.[5]
Para a adequada compreensão do
princípio da boa-fé contratual – boa-fé objetiva -, a doutrina atribui ao
princípio três funcionalidades: “(...) i) a função de cânone
interpretativo-integrativo do contrato (art. 113); ii) a função de fonte
normativa de deveres jurídicos, que podem até mesmo pre-existir à conclusão do
contrato, bem como sobreviver à sua extinção (art. 422); e iii) a função de
fonte normativa de restrições ao exercício de posições jurídicas (art. 187)
(...)”.[6] Também conceituadas como “função de interpretação do negócio
jurídico”, “função de controle” e “função de integração do contrato”.[7]
Na função de integração do
contrato estão os conceitos da supressio, surrectio, tu quoque, exceptio doli,
venire contra factum proprium no potest e duty to mitigate the loss, que, nas
palavras de LUCIANO DE CAMARGO PENTEADO, são figurares parcelares da boa-fé
objetiva.[8]
No presente artigo analisar-se-á,
sucintamente, a aplicação da supressio e da surrectio no Direito Societário, a
partir do julgamento da Apelação Cível nº 460.980.4/1-00, proferido pela C. 1ª
Câmara de Direito Privado I, do E. Tribunal de Justiça do estado de São Paulo.
Nesse julgado, relatado pelo
eminente Des. Guimarães e Souza, a C. Câmara aplicou os institutos da supressio
e da surrectio para afastar a pretensão da apelante de fazer com que a apelada
se abstivesse de utilizar determinado nome empresarial, com a seguinte
fundamentação: “(...) a eventual tolerância alegada pela apelante em permitir
que a apelada, pelo período de 4 anos, utilizasse a expressão ‘CIBELE’, gerou
efeitos jurídicos pela incidência da ‘surrectio’ e da ‘supressio’, figuras
parcelares da boa-fé objetiva”.[9]
No caso concreto, sob os
auspícios da boa-fé objetiva, o julgado considerou que a apelante, em razão de
sua inércia, renunciou ao direito de impugnar os atos praticados pela apelada,
concernentes ao uso do nome empresarial sub judice. Ou seja, com a inércia de
uma das partes (supressio), exsurge o direito da outra (surrectio),
configurando-se facetas de uma mesma moeda.
Porém, poderia o julgado aplicar
tais institutos? A resposta é positiva.
Na ensinança de FLÁVIO TARTUCE,
“quanto à supressio (Verwirkung), essa significa a supressão, por renúncia
tácita, de um direito, pelo seu não-exercício com o passar dos tempos”, ao
passo que a surrectio (Erwirkung) “surge de um direito diante de práticas, usos
e costumes”.[10] Logo, presentes uma omissão e uma ação, cada qual trazendo
consequências jurídicas para as partes.
Conforme ensina Luciano de
Camargo Penteado, citado no v. acórdão, “(...) A suppressio verifica-se de tal
modo que o tempo implica a perda de uma situação jurídica subjetiva em
hipóteses não subsumíveis nem à prescrição, nem à decadência. Trata-se de uma
caducidade que tem por causa a inação prolongada em segmento temporal
significativo. Não se aplica ao simples não ajuizamento de uma ação ou de uma
reconvenção. Um exemplo típico é o uso de área comum por condômino em regime de
exclusividade por período de tempo considerável, que implica a supressão da
pretensão de reintegração por parte do condomínio como um todo. Os alemães
identificam a hipótese como de Verwirküng. O seu conteúdo seria o de um direito
não exercido durante lapso de tempo razoavelmente largo e que, por conta desta
inatividade perderia sua eficácia, não podendo mais ser exercitado. A razão
desta supressão seria a de que teria o comportamento da parte gerado em outra a
representação de que o direito não seria mais atuado. A tutela da confiança,
desta forma, imporia a necessidade de vedação ao comportamento contraditório.
Verifica-se uma proximidade entre a situação da supressio e a do venire, sendo
o fato próprio, aqui, a não atuação, ou seja, um comportamento omissivo, que
implica a perda do direito ao exercício da pretensão, de modo legítimo. (...) A
surrectio verifica-se nos casos em que o decurso do tempo permite inferir o
surgimento de uma posição jurídica, pela regra da boa-fé. Normalmente, é figura
correlata à suppressio. A surreição consistiria no surgimento de uma posição
jurídica pelo comportamento materialmente nela contido, sem a correlata
titularidade. Como efeito deste comportamento, haveria, por força da
necessidade de manter um equilíbrio nas relações sociais, o surgimento de uma
pretensão. Deste modo, por exemplo, se ocorre distribuição de lucros diversa da
prevista no contrato social, por longo tempo, esta deve prevalecer em homenagem
à tutela da boa-fé objetiva. Trata-se do surgimento do direito a esta
distribuição – surrectio – por conta da sua existência na efetividade
social”.[11]
No julgado, embora proteger a
legislação o nome empresarial, pelas peculiaridades fáticas e tendo em vista a
força do princípio da boa-fé objetiva, nas figuras da supressio e da surrectio,
garantiu-se eficácia a uma situação consolidada no tempo.
Portanto, conclui-se que a função
de integração da boa-fé objetiva irradia, pelas figuras parcelares – supressio,
surrectio, venire contra factum proprium non potest, tu quoque e duty to
mitigate the loss -, relevante consequência jurídica nas relações negociais, na
órbita contratual e empresarial.
[1] Pós-graduando em Direito
Contratual pela Escola Paulista de Direito (EPD-SP). Bacharel em Direito pela
Universidade de Araraquara. Assistente Técnico Judiciário, lotado na
Presidência do Tribunal de Justiça do estado de São Paulo.
[2] Art. 422, CC -
[3] “Direito Civil – Teoria Geral
do Contrato e Contrato em Espécie”. Vol. III, Editora Método, São Paulo: 2006,
pág. 103.
[4] “O princípio da boa-fé
contractual” in “Princípios do Direito Civil Contemporâneo”. Coord. Maria
Celina Bodin de Moraes. Renovar, Rio de Janeiro: 2006, pág. 222.
[5] TARTUCE, Flávio. Op. Cit.,
pág. 97.
[6] NEGREIROS, Teresa. Op. Cit., pág. 223.
[7] TARTUCE, Flávio. Op. Cit., pág. 100.
[8] http://www.cantareira.br/thesis/figuras-parcelares-da-boa-fe-objetiva-e-venire-contra-factum-proprium/
[9] COMINATÓRIA – Direito
societário e propriedade industrial – Nome empresarial, elemento fantasia e
marca – Conceitos distintos e inconfundíveis – Empresas compostas pelo mesmo
grupo familiar – Desmembramento e constituição de outras sociedades
empresariais – Nomes empresariais inconfundíveis – Elemento fantasia – Não
confusão – Expressão ‘CIBELE’ de uso comum – Não exclusividade – Aplicação do
princípio da boa-fé objetiva – Incidência da suppressio e da surrectio – Marca
– Inexistência de registro – Inaplicabilidade da proteção conferida pela Lei n.
9.279/96 – Recurso desprovido.
[10] TARTUCE, Flávio. Op. cit.,
pág. 108/119.
[11] Apelação Cível nº
460.980.4/1-00, 1ª Câmara de Direito Privado I, Des. Rel. Guimarães e Souza, j.
de 12 de maio de 2009.
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