por
Rogério Sanches
O § 3.° do art. 158, introduzido pela Lei
11.923/2009, qualifica o crime quando cometido mediante a restrição da
liberdade da vítima, e essa condição é necessária para a obtenção da vantagem
econômica. A pena de reclusão passa a ser de 6 (seis) a 12 (doze) anos, além da
multa. Se resulta lesão corporal grave ou morte, aplicam-se as penas previstas
no art. 159, §§ 2.º e 3.º, respectivamente.
Antes da novel Lei, a tipificação do sequestro relâmpago gerava
indisfarçável controvérsia (na doutrina e na jurisprudência), havendo três
correntes:
a) art. 157, § 2.°, V, do CP (privação da
liberdade como causa de aumento);
b) art. 158 do CP (restrição da liberdade
como circunstância judicial desfavorável);
c) art. 159 do CP (privação da liberdade como
elementar do tipo).
Não era incorreto o entendimento de que referido comportamento
(popularmente chamado de seqüestro relâmpago) configurava qualquer um dos três
tipos penais, a depender do modus
operandi utilizado pelo agente:
a) se, para subtrair a coisa alheia móvel, o
agente precisou privar a vítima da sua liberdade de locomoção, temos o crime de
roubo majorado pelo seqüestro;
b) se, para receber a indevida vantagem
econômica, o agente, dependendo da colaboração da vítima, restringe sua
liberdade de locomoção, configurado estará o crime de extorsão (hoje,
qualificada pelo seqüestro);
c) se a vantagem depender do comportamento de
terceiro, servindo a rápida privação da liberdade da vítima como forma de
coagi-lo a entregar a recompensa exigida, extorsão mediante seqüestro.
Essa também parece ser a conclusão de Eduardo Cabette:“(...) o texto da
ementa, referindo-se à suposta tipificação do ´sequestro relâmpago’, dá a
entender que todos os casos que têm recebido esse nome informal seriam
necessariamente abrangidos pelo novo texto legal.
Tal impressão é absolutamente falsa. A Lei 11.923/2009 não cria um crime
autônomo que seria chamado doravante de ‘sequestro relâmpago’. Aliás, somente
menciona a infeliz expressão em sua ementa, sem criar um tipo penal novo, com
distinto nomen juris. O que fez efetivamente a Lei 11.923/2009, como já
mencionado alhures, é apenas e tão somente acrescer um § 3.º ao crime de
extorsão (art. 158, CP). Nesse § 3.º prevê a novel legislação uma modalidade de
extorsão qualificada pelo fato de ser o crime ‘cometido mediante a restrição de
liberdade da vítima’, sendo que ‘essa condição é necessária para a obtenção da
vantagem econômica’”.
Em resumo, com a nova Lei, a privação/restrição da liberdade da vítima pode
servir como meio para a prática de três crimes patrimoniais: roubo (art. 157, §
2.º, V), extorsão comum (art. 158, § 3.º) e extorsão mediante sequestro (art.
159).
ROUBO
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EXTORSÃO
COMUM
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EXTORSÃO
MEDIANTE SEQUESTRO
|
NÚCLEO:
Subtrair com violência
|
NÚCLEO:
Constranger com violência
|
NÚCLEO:
Sequestrar
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COLABORAÇÃO
DA VÍTIMA:
Dispensável
|
COLABORAÇÃO
DA VÍTIMA:
Indispensável (a vantagem depende de seu
comportamento)
|
COLABORAÇÃO
DA VÍTIMA:
Dispensável (a vantagem depende de comportamento
de terceira pessoa)
|
Art. 158, § 3.º e a Lei dos Crimes Hediondos
Já se discute na doutrina se o sequestro
relâmpago do art. 158, § 3.°, com resultado morte, é ou não crime hediondo?
Guilherme de Souza Nucci leciona que o
descuido do legislador não permite considerar o sequestro relâmpago como crime
hediondo, em nenhuma de suas formas: "A forma eleita para transformar
delitos em hediondos é a inserção no rol do art. 1.° da Lei 8.072/90. É o
critério enumerativo (...). Não constar desse rol elimina a infração penal do elenco
dos hediondos. A falha é, pois, evidente. São hediondos o roubo com resultado
morte (mas não o roubo com resultado lesão grave), a extorsão qualificada pela
morte (mas não a extorsão com resultado lesão grave), a extorsão mediante
sequestro, com resultado lesão grave ou morte. Não se menciona a extorsão com
restrição à liberdade, mesmo que com resultado lesão grave ou morte (art. 158,
§ 3.°, CP) (...). O novo delito do sequestro relâmpago, com resultado lesão
grave ou morte da vítima, tem penas compatíveis com a gravidade do fato, mas
não ingressa no contexto da Lei 8.072/90." (Manual de Direito Penal,
5.ed., São Paulo: Ed. RT, 2009, p. 720).
Ousamos discordar. Realmente a extorsão do §
3.° não está (explicitamente) catalogada no rol exaustivo da Lei 8.072/90 como
delito hediondo, sendo vedada analogia contra o acusado. Se do fato resulta na
vítima lesão corporal grave, o crime não se converte em hediondo, aplicando-se,
tão somente, as penas previstas no art. 159, § 2.º (é extorsão mediante
sequestro quod poenam)". Na extorsão, em nenhuma hipótese de lesão
corporal o crime é hediondo.
Situação diversa ocorre na provocação (dolosa
ou culposa) da morte da vítima, hipótese em que o crime será, sim, hediondo,
visto que nada mais é que desdobramento formal do tipo do art. 158, § 2.°,
tendo o legislador preservado a matéria criminosa, explicitando, somente, seu
mais novo modus operandi. O tipo penal do § 3.º não é autônomo, ao contrário, é
derivado e meramente explicitativo de uma forma de extorsão. Em outras palavras,
a nova qualificadora (com resultado morte) já estava contida no parágrafo
anterior, especificando-se, no derradeiro parágrafo, um meio de execução
próprio (restrição da liberdade de locomoção da vítima).
A interpretação literal deve ser acompanhada
da interpretação racional possível (teleológica), até o limite permitido pelo
Estado humanista – legal, constitucional e internacional – de Direito. As
regras aplicadas ao delito geral (art. 158, § 2.º) devem ser mantidas ao crime
específico (art. 158, § 3.º), permanecendo hediondo (quando ocorre o resultado
morte). Porque o § 3.º não criou crime novo, não disciplinou outro injusto
distinto da extorsão (apenas explicitou a forma de execução).
Se a extorsão (simples, genérica) com
resultado morte constitui crime hediondo, que sentido teria afirmar que a
extorsão (qualificada, específica) não o seria?
De que modo podemos admitir a conclusão de
que a extorsão do § 3.º do art. 158, com resultado morte, é crime hediondo? Por
meio da interpretação extensiva (que não se confunde com a analogia nem com a
progressiva). Qual é a diferença entre elas? A seguinte: (a) a interpretação
extensiva não foge nem ultrapassa a vontade do legislador; (b) na analogia
aplica-se a um fato análogo ("B") o que o legislador previu para outra
situação ("A"); (c) na interpretação progressiva atualiza-se a letra
da lei feita para a situação "A" em relação a uma situação
"B". Não é vontade do legislador abarcar o fato análogo ou posterior.
Daí a impossibilidade de analogia e interpretação progressiva contra o réu. O
aplicador da lei penal não pode fazer uso da analogia ou da interpretação
progressiva contra o réu porque falta, nesse caso, a vontade da lei. Da
interpretação extensiva ele pode fazer uso, desde que seja inequívoca a vontade
da lei.
Disse o legislador (na Lei dos Crimes
Hediondos, art. 1.º – Lei 8.072/90) que a extorsão com morte é crime hediondo.
Ora, se a extorsão com morte é crime hediondo, pouco importa a forma de
execução do delito (com privação ou sem privação ou restrição da liberdade da
vítima). Toda extorsão com morte (por vontade do legislador e da lei) é crime
hediondo. O § 3.º do art. 158 apenas detalhou uma forma de execução do delito
(com privação ou restrição da liberdade da vítima). O que vale para a extorsão
(simples) com morte, vale também para a extorsão (específica) com morte.
Note-se: em nada se alterou o substractum do delito (do injusto penal). O
conteúdo do injusto é substancialmente o mesmo. A extorsão simples com morte e
a extorsão qualificada com morte são fatos idênticos no princípio e no fim. O
que altera é o meio de execução. Não há dúvida que o meio faz parte dos dados
essenciais do delito (essentialia delicti), mas, no caso, não chega a alterar a
natureza do injusto. Por isso que o tratamento jurídico-penal deve ser
idêntico. Quando um determinado conteúdo (uma elementar ou circunstância)
altera o delito, é coisa distinta. Por exemplo: uma coisa é o roubo e outra é o
latrocínio. Essa distinção inequívoca não pode ser vislumbrada quando se
considera a extorsão simples com morte e a extorsão qualificada (pelo meio) e a
morte. Na essência os delitos são idênticos. E o que é idêntico não pode ter
tratamento penal distinto (os iguais devem ser tratados igualmente, os
desiguais desigualmente).
O que fez o § 3.º foi (apenas) especificar
uma das várias formas de execução do delito de extorsão. Ele não criou delito
novo. Sim, apenas explicitou uma das suas múltiplas possibilidades de execução.
Sem ele (sem o § 3.º) já era possível encaixar o sequestro relâmpago no art.
158 (aliás, muitos já faziam isso). Na medida em que esse § 3.º não inovou o
ordenamento jurídico-penal, criando ex novo um distinto delito, tendo apenas
explicitado uma das formas de execução da extorsão prevista no art. 158, seu
regime jurídico segue o que está estabelecido no art. 158 e seus parágrafos,
com as correções punitivas do § 3.º.
Visão legalista versus visão
constitucionalista: qual é o problema da visão legalista do Direito penal? É
que ela se prende exageradamente nas formas literais ou gramaticais (ou seja:
nos meandros da literalidade), sem atinar para o substrato (para a essência)
das coisas. O penalista legalista (da Escola técnico-jurídica de Rocco, Binding
etc.) foi treinado para decifrar as minúcias linguísticas e simbólicas da lei.
Vê as árvores, mas não consegue enxergar a floresta. Vê o acessório, sem às
vezes conseguir vislumbrar o principal. Ele se perde nos meandros formais.
Perde a noção do proporcional e do razoável. Tem dificuldade de distinguir os
âmbitos possíveis de interpretação de um dispositivo legal. Aliás, não é que
perde a perspectiva da proporcionalidade, muitas vezes nem chega a
conquistá-la.
Se a extorsão genérica (ou simples) com morte
é crime hediondo, como se pode negar que a extorsão qualificada (ou
especificada) com morte não o seja? Não se trata de violar o princípio da
legalidade: essa garantia formal não pode nunca ser esquecida ou aniquilada,
dentro do Estado humanista de Direito. Mas se o legislador, na lei, já escreveu
que a extorsão com morte é crime hediondo, claro que a nova forma delitiva
explicitada no § 3.º do art. 158 constitui crime hediondo (quando ocorre
morte). Isso nada mais representa que um desdobramento do injusto típico do §
2.º. O legislador, no § 3.º, não inovou ex abrupto o ordenamento jurídico.
Qual constitui outro erro dessa visão
legalista? Para além de não captar o sentido do proporcional e do razoável,
dentro, evidentemente, dos limites permitidos pelo princípio da legalidade, a
visão legalista cai num outro equívoco que é o seguinte: ela acompanha,
subscreve e apoia tudo quanto é bobagem (e arbitrariedades) que o legislador
escreve nas leis. Veja o paradoxo: o legalista positivista é capaz de negar a
aplicação da mesma lei para fatos substancialmente idênticos e, ao mesmo tempo,
aceitar um mundo de atrocidades e arbitrariedade escritas pelo legislador na
lei (sem nenhum senso crítico).
Visão constitucionalista: numa visão
constitucionalista o fundamental é respeitar a vontade da lei (garantia formal
da legalidade), porém, sempre submetida aos critérios limitadores da
razoabilidade, proporcionalidade etc.
A extorsão (especificada no § 3.º, quando
resulta morte) é crime hediondo? Sim, por força de uma interpretação extensiva
(que ainda atende a vontade da lei, sem entrar na analogia, que é vedada no
Direito penal, contra o réu). Mas atenção: daí cabe inferir que todas as
disposições da Lei dos Crimes Hediondos devem, então, ter incidência contra o
réu (que praticou uma extorsão específica com resultado morte)? Vamos devagar:
nem tudo que o legislador projetou para os crimes hediondos é válido. Ao
legislar sobre os crimes hediondos ele foi além do que podia (escreveu mais do
que devia). Ao proibir liberdade provisória, ao proibir progressão de regime
etc., foi muito além do que lhe competia. Ou seja: quem tem o domínio da visão
constitucionalista do Direito consegue distinguir o que é legítimo (válido) e o
que é ilegítimo (inválido) (consoante Ferrajoli). Esse exercício de
proporcionalidade, razoabilidade, é que falta ao legalista (que é muito
simplista, muito subsuntivista, muito formalista, gramaticalista ou
literalista). O constitucionalista trabalha com outro parâmetro de referência:
que é a ponderação, a equidade, o equilíbrio, a razoabilidade etc.
Concluindo: o crime de extorsão previsto no §
3.º do art. 158 do CP, quando resulta morte, é crime hediondo, por força de uma
interpretação extensiva do § 2.º. Mas nem todas as disposições da Lei dos
Crimes Hediondos são aplicáveis, ou seja, somente as constitucionalmente
legítimas é que podem ser sustentadas no Estado humanista de Direito, que é a
síntese do Estado legal, constitucional e internacional de Direito.
[1] Se a restrição for desnecessária, o
agente responderá pelo crime de extorsão (art. 158 do CP) em concurso material
com sequestro ou cárcere privado (art. 148 do CP), raciocínio já aplicado pela
jurisprudência quando se trata de roubo (art. 157 do CP).
[2] Comparando as penas dos crimes de roubo e
extorsão, quando praticados com privação da liberdade da vítima, temos doutrina
tecendo severas críticas, alegando desproporcionalidade. Nucci discorda e assim
justifica: “Outra polêmica gerada pela Lei 11.923/2009, inserindo a figura
típica do art. 158, § 3.°, do Código Penal, é a pretensa lesão ao princípio da
proporcionalidade. Diz-se que as penas são muito elevadas e não estariam em
hamonia com outros delitos. Para a figura simples, prevê-se sanção de reclusão
de 6 a 12 anos. Em nosso entendimento, há perfeita proporcionalidade. A
extorsão cometida com emprego de arma ou por duas ou mais pessoas pode redundar
na pena de 5 anos e 4 meses a 15 de reclusão. Ora, a extorsão com restrição da
liberdade que, invariavelmente, é cometida com emprego de arma e mediante
concurso de duas ou mais pessoas, atinge 6 a 12 anos. Está aquém do mal prometido
contra a vítima, que, além de sofrer o constrangimento mediante emprego de arma
e concurso de pessoas, como regra, ainda tem a liberdade restringida, sofrendo
trauma psicológico em grande parte das vezes. O mesmo se diga do roubo com
emprego de arma ou concurso de duas ou mais pessoas (reclusão, de cinco anos e
4 meses a 15 anos)”. (Manual de Direito Penal, 5.ed., São Paulo: Ed. RT, 2009,
p. 720).
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