Vitor
Vilela Guglinski.
Advogado e professor, pós-graduado com
especialização em Direito do Consumidor.
É com estupefação que tenho acompanhado - e
creio que também outros tantos - as notícias dando conta da intenção da FIFA -
Fédération Internationale de Football Association, no sentido de que o governo
federal suspenda, durante a Copa de 2014, a aplicação do caso Código de Defesa
do Consumidor, bem como reveja a concessão de meia-entrada nos estádios,
garantida aos estudantes por leis estaduais, e aos idosos pelo Estatuto do
Idoso, verdadeiros microssistemas garantidores de direitos de coletividades
consideradas desfavorecidas em nosso país.
Vozes contrárias ao acolhimento das
reivindicações daquela entidade pelo governo federal já estão aparecendo, a
começar pelo IDEC – Instituto Brasileiro de Defesa do Consumidor, o qual
direcionou uma carta à Presidência da República, manifestando seu
descontentamento e dispensando críticas em relação à possível revisão do PL
2330/11, denominado Lei Geral da Copa, que tememos seja levada a cabo pelo
Legislativo e Executivo.
Em outras palavras, requer a FIFA a supressão
de direitos fundamentais garantidos àqueles segmentos da sociedade,
juridicamente considerados fática, econômica, jurídica e socialmente
desfavorecidos, bem como seja permitida a comercialização de bebidas alcoólicas
nos estádios, tudo na contramão das diretrizes e princípios que informam a
garantia do equilíbrio social visado com a prevenção, precaução e repressão de
condutas consideradas, pelo direito, como danosas à sociedade.
Atender aos interesses da FIFA, perdoem-me
pela expressão, será o mesmo que cuspir na cara dos juristas, legisladores,
segmentos sociais, enfim, de todos que trabalharam durante anos, se debruçando
com afinco na confecção desses estatutos garantidores de direitos; será cuspir
no Judiciário, que, após a CF/88 deixou de ficar de joelhos e, paulatinamente,
vem aplicando as disposições desses diplomas legais protetivos, garantindo a
fiel observância dos preceito constitucionais. Pior ainda, será o mesmo que
cuspir nos milhares de consumidores, idosos, estudantes, isto é, sujeitos cujos
direitos são tutelados por leis específicas porquanto sua condição social
reclama aquelas tutelas.
Nossa Constituição Federal traz, no art. 170,
e incisos, os princípios informadores da ordem econômica, sendo que a defesa do
consumidor é um daqueles princípios a serem observados para que o exercício da
atividade econômica transcorra em respeito aos demais interesses multicitados
no texto constitucional. Além disso, a CF/88, em seu Título II, Capítulo I, ao
tratar dos direitos e garantias fundamentais e dos direitos e deveres
individuais e coletivos, respectivamente, prescreveu que "o Estado
promoverá, na forma da lei, a defesa do consumidor (art. 5º, XXXII),
consignando, posteriormente, no art. 48 do ADCT que "o Congresso Nacional,
dentro de cento e vinte dias da promulgação da Constituição, elaborará código
de defesa do consumidor."
Cumprindo a determinação constitucional,
cento e oitenta dias após sua publicação o codex consumerista (Lei nº 8.078
/90) entrou em vigor dispondo logo em seu art. 1º que se trata de norma de ordem
pública e interesse social. Ao proclamar que suas normas são de ordem pública e
interesse social, o CDC está a dizer que aquelas são cogentes e inderrogáveis
pela vontade das partes, bem como é um microssistema com função social que, nos
dizeres de LEONARDO DE MEDEIROS GARCIA, “não só procuram assegurar uma série de
novos direitos aos consumidores, mas também possuem a função de transformar a
sociedade de modo a se comportar de maneira equilibrada e harmônica nas
relações jurídicas.” (In Direito do Consumidor: código comentado e
jurisprudência. 7ª ed. rev. amp. e atual. Niterói: Impetus, 2011)
Numa análise perfunctória, não é difícil
verificar que a própria Carta Magna conferiu status constitucional aos direitos
do consumidor, ao determinar a promoção de sua defesa, na forma da lei. Daí
dizer-se que o CDC possui vocação constitucional. Ademais, como magistralmente
pontuado por SÉRGIO CAVALIERI FILHO, o CDC é verdadeira "sobre-estrutura
jurídica multidisciplinar, aplicável em toda área do direito onde ocorrer uma
relação de consumo" (In Programa de Responsabilidade Civil. 2ª ed. São
Paulo: Malheiros, 1998). Sobre a harmonia nessas relações, o CDC também é
enfático ao dispor em seu art. 4º que a harmonização dos interesses dos
participantes das relações de consumo somente será alcançada caso sejam
compatibilizados com a proteção do consumidor, e sempre, registre-se, observada
a boa-fé objetiva.
Assim, revela-se verdadeiro absurdo a
permissão contida no art. 33 do PL nº 2330/11, que assim dispõe:
Art.
33.
Os critérios para cancelamento, devolução e reembolso de Ingressos, assim como
para alocação, realocação, marcação, remarcação e cancelamento de assentos nos
locais dos Eventos serão definidos pela FIFA, a qual poderá inclusive dispor
sobre a possibilidade:
I - de modificar datas, horários ou locais
dos Eventos, desde que seja concedido o direito ao reembolso do valor do
Ingresso ou o direito de comparecer ao Evento remarcado;
II - da venda de Ingresso de forma avulsa ou
conjuntamente com pacotes turísticos ou de hospitalidade; e
III - de estabelecimento de cláusula penal no
caso de desistência da aquisição do Ingresso após a confirmação de que o pedido
de Ingresso foi aceito ou após o pagamento do valor do Ingresso,
independentemente da forma ou do local da submissão do pedido ou da aquisição
do Ingresso.
Ora, o dispositivo em questão afronta
veementemente o disposto no art. 49 do CDC, que garante a este o prazo de
reflexão de 7 dias para a desistência do contrato quando a contratação ou o
fornecimento do produto ou do serviço ocorrer fora do estabelecimento
comercial. Como se sabe, hodiernamente inúmeras vendas, como ocorre com a venda
de ingressos para eventos, inclusive, são feitas pela internet, sendo que,
provavelmente milhares de torcedores irão adquirir seus ingressos dessa forma.
A aquisição de ingressos é, indubitavelmente,
um contrato. Então o consumidor, caso exercite o seu direito de reflexão,
poderá ser sancionado pelo exercício regular de um direito?! Era só o que
faltava! Ficará ao livre arbítrio da FIFA definir os critérios para
cancelamento, devolução e reembolso de ingressos, praticar venda casada no
fornecimento de ingressos e estabelecer cláusula penal, “independentemente da
forma ou do local da submissão do pedido ou da aquisição do Ingresso”? Isso é
“escarrar” na cara do consumidor, data maxima venia!
Permitir que a FIFA imponha ao Brasil as
regras que melhor lhe atendam é, mais do que afrontar as disposições
constitucionais e do microssistema consumerista, afrontar os seguintes
fundamentos da República Federativa do Brasil: a soberania, a cidadania e a
dignidade da pessoa humana (art. 1º, I, II e II, da CF). Quando o consumidor
exerce seus direitos, está exercendo sua cidadania. Atender às reivindicações
da nominada entidade é permitir que um ente não soberano intervenha na nossa
soberania. Quando nossa bandeira tremula ostentando a frase “Ordem e
Progresso”, nessa ordem está compreendida a ordem jurídica. A independência
nacional da República Federativa do Brasil é princípio reitor de suas relações
internacionais (art. 4º, I, da CF). Se a ordem jurídica é um dos instrumentos a
garantir essa independência em relação a Estados estrangeiros, o que se dirá em
relação a uma mera entidade que regula o futebol!? Todos esses estatutos
garantidores de direitos, em última análise, foram forjados de modo a assegurar
a dignidade da pessoa humana. Normas jurídicas servem para isso. As leis servem
ao homem, e não o contrário.
No que toca aos idosos, a garantia de
meia-entrada também é inspirada no texto constitucional, figurando no Capítulo
V da Lei nº 10.741/03, sob a rubrica “Da Educação, Cultura, Esporte e Lazer”
preceituando no art. 23 que “A participação dos idosos em atividades culturais
e de lazer será proporcionada mediante descontos de pelo menos 50% (cinqüenta
por cento) nos ingressos para eventos artísticos, culturais, esportivos e de
lazer, bem como o acesso preferencial aos respectivos locais.” Como se vê, o
preceptivo é imperativo ao dizer que a participação dos idosos SERÁ
PROPORCIONADA. Portanto, não é mero conselho ou orientação; é norma imperativa
(grifei).
Em relação à meia-entrada garantida aos
estudantes, tal decorre da necessidade de se assegurar a essa coletividade o
seu pleno desenvolvimento e preparo para o exercício da cidadania, consoante
dispõe o caput do art. 205 da CF/88, não sendo demais lembrar que o dispositivo
em comento se encontra no capítulo que trata da educação, da cultura e do
desporto. Assim, deve ser garantida a meia-entrada em eventos esportivos.
Não obstante as leis estaduais que garantem a
meia-entrada aos estudantes, a MP 2208/01 assegura esse benefício a menores de
dezoito anos que apresentem documento de identidade expedido pelos órgãos
públicos competentes (art. 2º), bem como ao estudante que comprove essa
qualidade através da “exibição de documento de identificação estudantil
expedido pelos correspondentes estabelecimentos de ensino ou pela associação ou
agremiação estudantil a que pertença, inclusive pelos que já sejam utilizados,
vedada a exclusividade de qualquer deles” (art. 1º).
Não custa lembrar que a MP 2208/01 teve como
objetivos principais: a) regulamentar a comprovação da situação de estudante;
b) afastar o monopólio da UNE e da UBES, no que diz respeito à emissão de
carteirinhas cujo uso permite que o estudante goze de seus direitos.
Há quem diga que a MP em referência perdeu
sua validade por decurso de tempo, o que não é verdade, pois, para os
desavisados, a EC 32/01 atribuiu lapso temporal indeterminado para as MPs que
lhe são anteriores. Dessa forma, as MPs anteriores à emenda constitucional em
tela somente perderão sua eficácia se forem revogadas, o que não é o caso.
Outro ponto de relevância inafastável diz
respeito à venda de bebidas alcoólicas nos estádios. A proibição nesse sentido
deriva do art. 13-A, II, da Lei nº 10.671/03, conhecida como Estatuto do
Torcedor, sendo também uma norma de ordem pública e interesse social, na medida
em que guarda íntima relação com o CDC. Permitir, mesmo que em caráter
transitório, que a venda e consumo de bebidas seja liberada nos estádios
durante a Copa de 2014, é arriscar demasiadamente a segurança pública, pois é
sabido que o consumo exagerado de bebidas é responsável por todo o tipo de
desordem social, culminando, não raro, na prática de crimes.
Será que isso vale a pena? Será viável
afastar conquistas sociais hoje estampadas em legislações fortes, com vocação
constitucional, em nome de interesses particulares? O legado que essa Copa do
Mundo deixará será positivo? Alguém sabe?
O que se sabe é que a estrutura construída
para a Copa de 2014 não é barata. Já tem saído bastante cara, não só para o
bolso do contribuinte, mas, em situações piores, para toda uma coletividade que
sofre com todo o tipo de revés, como a falta de hospitais, escolas, alimentação
de qualidade, desemprego, moradia, segurança, desamparo, enfim, não por acaso
os direitos sociais arrolados no art. 6º da Carta Fundamental.
Posso agravar mais?
Pois bem, some-se a isso o fato inarredável
de que o brasileiro, aquele que “não desiste nunca”, e em diversas ocasiões
“vende” o almoço pra comprar o jantar, para ir a um jogo de futebol às vezes
também vende o jantar pra comprar o ingresso ao estádio. Esse torcedor, como a
experiência já demonstrou em diversas oportunidades, não raro se envolve em
brigas nos estádios, e às vezes mata torcedores adversários, às vezes sob a
influência de álcool, mas, acima de tudo, em razão da pobreza cultural de que é
infeliz portador. Esse torcedor é capaz de matar porque sua existência é
marcada pela violência institucional perpetrada pelo Estado, que não lhe
garante os direitos mais básicos para viver dignamente, mas lhe garante pão e
circo. Afinal, é o que importa! Façamos o indivíduo esquecer sua condição
indigna garantindo-lhe o acesso aos jogos de futebol, mesmo com os ingressos
mais baratos chegando a custar quase 10% do salário mínimo, e maximizemos os
lucros na Copa do Mundo. E por quê não? Afinal, será bom para a economia! Vamos
acrescentar um ingrediente a mais nas bebidas que serão vendidas nos estádios,
caso o governo federal concorde com as imposições mercantilistas da FIFA: vamos
acrescentar uma dose de ódio que torcerá as vísceras do torcedor (perdão pelo
trocadilho) quando este tiver seus direitos constitucionais desrespeitados
durante a Copa de 2014.
Não é demais repetir que o desenvolvimento
econômico, cujas balizas se encontram no Capítulo I, do Título VII, da
Constituição Federal, deve observar a garantia de outros direitos também
previstos constitucionalmente, e que se encontram em posição topográfica em
relação à ordem econômica, estatuídos no rol de direitos fundamentais
individuais e coletivos, sob pena de até mesmo configurar ofensa aos princípios
reitores da Administração Pública, expressos na CF/88 ou mesmo aqueles
reconhecidos como tal.
Ceder aos humores da FIFA é contrabando
legislativo travestido de prosperidade econômica e suposta projeção no cenário
mundial, o que redundará em altos custos sociais, decorrentes da violação de
direitos fundamentais.
Se a nossa Carta Política não admite nem
mesmo a deliberação de emenda constitucional tendente a abolir os direitos e
garantias individuais, a teor do disposto no art. 60º § 4º, IV, da Constituição
Federal – o que, em tese, objetivaria consolidar uma situação duradoura no
tempo e de caráter geral - o que se pode dizer de um projeto de lei com caráter
flagrantemente unilateral, que visa a atender interesses exclusivos de uma
entidade futebolística? É flagrantemente inconstitucional, e deverá, de lege
ferenda, ser vetado, no que contrariar os preceitos constitucionais.
Contrariar o CDC, o Estatuto do Idoso e as
garantias estudantis é, reflexamente, contrariar a Constituição. Caso essa
situação se concretize, caberá ao Ministério Público e demais legitimados pela
promoção de ações coletivas promover as intervenções pertinentes, sem poupar
armas, de modo a assegurar a integridade leis que garantem direitos e proteção
a seus destinatários.
Só faltava o nosso país deixar de ser colônia
de Portugal e virar colônia da FIFA!
Esperamos, sinceramente, que nossa
presidenta, que foi ativista, foi presa e torturada por lutar por liberdade e
pelos direitos mais caros do ser humano, enfim, que combateu a ditadura
militar, não ceda à ditadura da FIFA.
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