Flávio Tartuce.
Doutor em Direito Civil pela USP.
Mestre em Direito Civil Comparado pela
PUCSP.
Professor da Escola Paulista de Direito
e da Rede de Ensino LFG.
Advogado e Consultor Jurídico.
Conforme notícias recentemente veiculadas, o
Superior Tribunal de Justiça concluiu pela aplicação do prazo geral de
prescrição do Código Civil (art. 205, dez anos), para as demandas propostas por
consumidores em decorrência da inscrição indevida em cadastros de
inadimplentes.[1]
O Tribunal da Cidadania segue tendência
anterior, de interação entre o Código Civil de 2002 e o Código de Defesa do
Consumidor, pela linha da festejada teoria do diálogo das fontes. Supera-se, assim, a ideia de que a Lei
8.078/1990 constitui um microssistema jurídico, totalmente isolado do Código
Civil, como era pregado nos anos iniciais de vigência do Código do Consumidor.
A teoria do diálogo das fontes foi
desenvolvida na Alemanha por Erik Jayme, professor da Universidade de Helderberg,
e trazida ao Brasil por Claudia Lima Marques, da Universidade Federal do Rio
Grande do Sul. A essência da teoria é que as normas jurídicas não se excluem –
supostamente porque pertencentes a ramos jurídicos distintos –, mas se
complementam. Há, nesse marco teórico, a premissa de uma visão unitária do
ordenamento jurídico.
A principal justificativa que pode surgir
para a teoria refere-se à sua funcionalidade. É cediço que vivemos um momento
de explosão de leis, um “Big Bang legislativo”, como simbolizou Ricardo
Lorenzetti. O mundo pós-moderno e globalizado, complexo e abundante por
natureza, convive com uma quantidade enorme de normas jurídicas, a deixar o
aplicador do Direito até desnorteado. Convive-se com a era da desordem,
conforme expõe o mesmo Lorenzetti.[2] O diálogo das fontes serve como leme
nessa tempestade de complexidade.
Relativamente às razões filosóficas e sociais
da aplicação da tese, Claudia Lima Marques ensina que:
“Segundo Erik Jayme, as características da
cultura pós-moderna no direito seriam o pluralismo, a comunicação, a narração,
o que Jayme denomina de ‘le retour des sentiments’, sendo o Leitmotiv da
pós-modernidade a valorização dos direitos humanos. Para Jayme, o direito como
parte da cultura dos povos muda com a crise da pós-modernidade. O pluralismo
manifesta-se na multiplicidade de fontes legislativas a regular o mesmo fato,
com a descodificação ou a implosão dos sistemas genéricos normativos
(‘Zersplieterung’), manifesta-se no pluralismo de sujeitos a proteger, por
vezes difusos, como o grupo de consumidores ou os que se beneficiam da proteção
do meio ambiente, na pluralidade de agentes ativos de uma mesma relação, como
os fornecedores que se organizam em cadeia e em relações extremamente
despersonalizadas. Pluralismo também na filosofia aceita atualmente, onde o
diálogo é que legitima o consenso, onde os valores e princípios têm sempre uma
dupla função, o “double coding”, e onde os valores são muitas vezes
antinômicos. Pluralismo nos direitos assegurados, nos direitos à diferença e ao
tratamento diferenciado aos privilégios dos “espaços de excelência” (Jayme,
Erik. Identité culturelle et intégration: le droit international privé
postmoderne. Recueil des Cours de l’Académie de Droit International de la Haye,
1995, II, Kluwer, Haia, p. 36 e ss.).[3]
A primeira tentativa de aplicação da tese do
diálogo das fontes se dá com a possibilidade de subsunção concomitante tanto do
Código de Defesa do Consumidor quanto do Código Civil a determinadas relações
obrigacionais, sobretudo aos contratos. Isso diante da conhecida aproximação
principiológica entre os dois sistemas, consolidada pelos princípios sociais
contratuais, sobretudo pela boa-fé objetiva e pela função social dos contratos.
Por esta premissa é que se supera a ideia de que o Código Consumerista seria um
microssistema jurídico, totalmente isolado.
Pois bem, Claudia Lima Marques demonstra três
diálogos possíveis a partir da teoria exposta, diante do modelo brasileiro de
coexistência e aplicação simultânea do Código de Defesa do Consumidor, do
Código Civil de 2002 e da legislação especial.[4]
De início, em havendo aplicação simultânea
das duas leis, se uma lei servir de base conceitual para a outra, estará
presente o diálogo sistemático de coerência. Como exemplo, os conceitos e as regras
básicas relativas aos contratos de espécie podem ser retirados do Código Civil
mesmo sendo o contrato de consumo. Tal premissa incide para a compra e venda,
para a prestação de serviços, para a empreitada, para o transporte, para o
seguro, entre outros.
Ato contínuo, se o caso for de aplicação
coordenada de duas leis, uma norma pode completar a outra, de forma direta
(diálogo de complementaridade) ou indireta (diálogo de subsidiariedade). O
exemplo típico ocorre com os contratos de consumo que também são de adesão,
tema objeto deste artigo. Em relação às cláusulas abusivas, pode ser invocada a
proteção dos consumidores constante do art. 51 do CDC e ainda a proteção dos
aderentes constante do art. 424 do CC.
Por fim, os diálogos de influências recíprocas
sistemáticas estão presentes quando os conceitos estruturais de uma determinada
lei sofrem influências da outra. Assim, o conceito de consumidor pode sofrer
influências do Código Civil de 2002. Como afirma Claudia Lima Marques, “é a
influência do sistema especial no geral e do geral no especial, um diálogo de
doublé sens (diálogo de coordenação e adaptação sistemática)”.[5]
A busca de um prazo maior, previsto no Código
Civil, para demanda proposta pelo consumidor constitui exemplo típico de
incidência concomitante do segundo e do terceiro diálogo, uma vez que o Código
do Consumidor não prevê prazo específico para a ação fundada em inscrição
indevida em cadastro de inadimplementes. Não se pode socorrer diretamente ao
art. 27 do CDC, que consagra prazo de cinco anos para a ação de reparação de
danos em decorrência de acidente de consumo, pois tal comando não se enquadra
perfeitamente à fattispecie. Dessa forma, o melhor caminho é de incidência do
prazo geral de prescrição, de dez anos, consagrado pelo art. 205 do Código
Civil de 2002.[6]
Cumpre destacar que tal tendência, de busca
do prazo maior previsto no Código Civil já foi efetivada pelo próprio Superior
Tribunal de Justiça, por meio de sua Súmula 412, que preconiza: “A ação de
repetição de indébito de tarifas de água e esgoto sujeita-se ao prazo
prescricional estabelecido no Código Civil”.
Por fim, a notícia do STJ relata a incidência
da teoria actio nata, tendo início o prazo prescricional a partir da ciência do
dano e não do evento em si. De fato, a citada teoria é a que melhor se adapta
ao Código de Defesa do Consumidor, podendo ser retirada do já citado art. 27 da
Lei Consumerista.[7] Ademais, conforme
destacado em outras obras, a teoria actio nata tem relação direta com a
boa-fé objetiva, um dos princípios fundantes da Lei n. 8.078/1990, diante da
valorização da informação e da realidade dos fatos.[8] Nesses pontos, portanto,
o STJ fez o seu papel de Tribunal da Cidadania.
[1]
http://www.stj.jus.br/portal_stj/publicacao/engine.wsp?tmp.area=398&tmp.texto=103405.
Acesso em 7 de outubro de 2011.
[2] Todos os referenciais do jurista
argentino constam em: LORENZETTI, Ricardo Luís. Teoria da decisão judicial.
Trad. Bruno Miragem. Com notas e revisão de Claudia Lima Marques. São Paulo:
RT, 2009.
[3] MARQUES, Cláudia Lima; BENJAMIM, Antonio
Herman V.; MIRAGEM, Bruno. Comentários ao Código de Defesa do Consumidor. 3.
ed. São Paulo: RT, 2010. p. 30.
[4] MARQUES, Claudia Lima; BENJAMIM, Antonio
Herman V.; BESSA, Leonardo Roscoe. Manual de Direito do Consumidor. São Paulo:
RT, 3ª Edição, 2010. 108-122
[5] MARQUES, Claudia Lima; BENJAMIM, Antonio
Herman V.; BESSA, Leonardo Roscoe. Manual de Direito do Consumidor. São Paulo:
RT, 3ª Edição, 2010. 1114.
[6] CC/2002. “Art. 205. A prescrição ocorre
em dez anos, quando a lei não lhe haja fixado prazo menor”.
[7] Veja-se, com destaque, a actio nata:
“Prescreve em cinco anos a pretensão à reparação pelos danos causados por fato
do produto ou do serviço prevista na Seção II deste Capítulo, iniciando-se a
contagem do prazo a partir do conhecimento do dano e de sua autoria”.
[8] Conforme exposto em: TARTUCE, Flávio.
Manual de Direito Civil. Volume Único. São Paulo: GEN/Método, 2011; TARTUCE,
Flávio. Direito Civil. Vol. 1. Lei de Introdução e Parte Geral. São Paulo:
GEN/Método, 7ª Edição, 2011.
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