A distinção entre pessoa jurídica e física
surgiu para resguardar bens pessoais de empresários e sócios em caso da
falência da empresa. Isso permitiu mais segurança em investimentos de grande
envergadura e é essencial para a atividade econômica. Porém, em muitos casos,
abusa-se dessa proteção para lesar credores. A resposta judicial a esse fato é
a desconsideração da personalidade jurídica, que permite superar a separação
entre os bens da empresa e dos seus sócios para efeito de determinar
obrigações.
A ministra Nancy Andrighi, do Superior
Tribunal de Justiça (STJ), conta que a técnica jurídica surgiu na Inglaterra e
chegou ao Brasil no final dos anos 60, especialmente com os trabalhos do
jurista e professor Rubens Requião. “Hoje ela é incorporada ao nosso
ordenamento jurídico, inicialmente pelo Código de Defesa do Consumidor (CDC) e
no novo Código Civil (CC), e também nas Leis de Infrações à Ordem Econômica
(8.884/94) e do Meio Ambiente (9.605/98)”, informou. A ministra adicionou que o
STJ é pioneiro na consolidação da jurisprudência sobre o tema.
Um exemplo é o recurso especial (REsp)
693.235, relatado pelo ministro Luis Felipe Salomão, no qual a desconsideração
foi negada. No processo, foi pedida a arrecadação dos bens da massa falida de
uma empresa e também dos bens dos sócios da empresa controladora. Entretanto, o
ministro Salomão considerou que não houve indícios de fraude, abuso de direito
ou confusão patrimonial, requisitos essenciais para superar a personalidade
jurídica, segundo o artigo 50 do CC, que segue a chamada “teoria maior”.
Segundo Ana de Oliveira Frazão, advogada,
professora da Universidade de Brasília (UnB) e especialista no tema , hoje há
duas teorias para aplicação da desconsideração. A maior se baseia no antigo
Código Civil e tem exigências maiores. Já na teoria menor, com base na
legislação ambiental e da ordem econômica, o dano a ser reparado pode ter sido
apenas culposo e se aplica, por exemplo, quando há desvio de finalidade da
empresa.
“Acho a teoria menor muito drástica, pois
implica a completa negação da personalidade jurídica. Todavia, entendo que
pequenos credores, como consumidores, e credores involuntários, como os
afetados por danos ambientais, merecem tutela diferenciada”, opina a
professora.
Teoria
menor
Um exemplo da aplicação da teoria menor em
questões ambientais foi o voto do ministro Herman Benjamin no REsp 1.071.741.
No caso, houve construção irregular no Parque Estadual de Jacupiranga, no
estado de São Paulo. A Segunda Turma do STJ considerou haver responsabilidade
solidária do Estado pela falha em fiscalizar.
Entretanto, a execução contra entes estatais
seria subsidiária, ou seja, o estado só arcaria com os danos se o responsável
pela degradação ecológica não quitasse a obrigação. O ministro relator ponderou
que seria legal ação de regresso que usasse a desconsideração caso o
responsável pela edificação não apresentasse patrimônio suficiente para reparar
o dano ao parque.
Outro julgado exemplar da aplicação da teoria
menor foi o REsp 279.273, julgado pela Terceira Turma do STJ. Houve pedido de
indenização para as vítimas da explosão do Shopping Osasco Plaza, ocorrida em
1996. Com a alegação de não poder arcar com as reparações e não ter
responsabilidade direta, a administradora do centro comercial se negava a
pagar.
O relator do recurso, ministro Ari
Pargendler, asseverou que, pelo artigo 28 do CDC, a personalidade jurídica pode
ser desconsiderada se há abuso de direito e ato ilícito. No caso não houve
ilícito, mas o relator afirmou que o mesmo artigo estabelece que a
personalidade jurídica também pode ser desconsiderada se esta é um obstáculo ao
ressarcimento de prejuízos causados aos consumidores.
Cota
social
Entre as teses consolidadas na jurisprudência
do STJ está a aplicada no REsp 1.169.175, no qual a Terceira Turma, seguindo
voto do ministro Massami Uyeda, decidiu que a execução contra sócio de empresa
que teve sua personalidade jurídica desconsiderada não pode ser limitada à sua
cota social. No caso, um professor sofreu queimaduras de segundo grau nos
braços e pernas após explosão em parque aquático.
A empresa foi condenada a pagar indenização
de R$ 20 mil, mas a vítima não recebeu. A personalidade da empresa foi
desconsiderada e a execução foi redirecionada a um dos sócios. O ministro Uyeda
afirmou que, após a desconsideração, não há restrição legal para o montante da
execução.
Desconsideração
inversa
Pessoas físicas também tentam usar pessoas
jurídicas para escapar de suas obrigações. No REsp 948.117, um devedor se valeu
de empresa de sua propriedade para evitar execução. Para a relatora, ministra
Nancy Andrighi, seria evidente a confusão patrimonial e aplicável a
“desconsideração inversa”. A ministra ressalvou que esse tipo de medida é
excepcional, exigindo que se atendam os requisitos do artigo 50 do CC.
Empresa
controladora
Outro exemplo de aplicação da desconsideração
da personalidade foi dado no REsp 1.141.447, relatado pelo ministro Sidnei
Beneti, da Terceira Turma do STJ. No caso, desconsiderou-se a personalidade
jurídica da empresa controladora para poder penhorar bens de forma a quitar
débitos da sua controlada.
O credor não conseguiu encontrar bens
penhoráveis da devedora (a empresa controlada), entretanto a empresa
controladora teria bens para quitar o débito. Para o ministro Beneti, o fato de
os bens da empresa executada terem sido postos em nome de outra, por si só,
indicaria malícia, pois estariam sendo desenvolvidas atividades de monta por
intermédio de uma empresa com parco patrimônio.
Entretanto, na opinião de vários juristas e
magistrados, a desconsideração não pode ser vista como panaceia e pode se
tornar uma faca de dois gumes. A professora Ana Frazão opina que, se, por um
lado, aumenta a proteção de consumidores, por outro, há o risco de desestimular
grandes investimentos. Esse posicionamento é compartilhado por juristas como
Alfredo de Assis Gonçalves, advogado e professor aposentado da Universidade
Federal do Paraná, que teme já haver uso indiscriminado da desconsideração
pelos tribunais.
A ministra Nancy Andrighi, entretanto,
acredita que, no geral, os tribunais têm aplicado bem essa técnica. Ela alertou
que criminosos buscam constantemente novos artifícios para burlar a legislação.
“O que de início pode parecer exagero ou abuso de tribunais na interpretação da
lei, logo se mostra uma inovação necessária”, declarou.
Fraudes
e limites
A ministra do STJ dá como exemplo um recente
processo relatado por ela, o REsp 1.259.018. A principal questão no julgado é a
possibilidade da extensão dos efeitos da falência a empresas coligadas para
reparar credores. A ministra Nancy apontou que haveria claros sinais de fraude,
com transferência de bens entre as pessoas jurídicas coligadas e encerramento
das empresas com dívidas. Para a ministra, os claros sinais de conluio para
prejudicar os credores autorizaria a desconsideração da personalidade das
empresas coligadas e a extensão dos efeitos da falência.
Impor limites ao uso da desconsideração
também é preocupação constante de outros magistrados do STJ, como manifestado
pelo ministro Massami Uyeda em outro processo. No REsp 1.080.682, a Caixa
Econômica Federal, por meio da desconsideração, tentou cancelar a transferência
de imóvel para pessoa jurídica em processo de falência.
O bem pertencia ao ex-administrador da
empresa falimentar e, segundo a Caixa, seria uma tentativa de mascarar sua
verdadeira propriedade. Contudo, o ministro Uyeda apontou que a transferência
do imóvel ocorreu mais de um ano antes da tentativa de penhora. Além disso,
naquele momento, o proprietário do imóvel não administrava mais a empresa.
Fonte:
STJ
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