Autor: Eduardo Luiz
Santos Cabette, Delegado de Polícia, Mestre em Direito Social, Pós – graduado
com especialização em Direito Penal e Criminologia e Professor de Direito
Penal, Processo Penal, Legislação Penal e Processual Penal Especial e
Criminologia na graduação e na pós – graduação da Unisal.
Conforme salienta Souza Netto em obra especializada a
respeito de Sistemas e Princípios do Processo Penal, sempre houve certa
discordância doutrinária acerca da nomenclatura do “Princípio da Presunção de
Inocência” constitucionalmente previsto no artigo 5º., LVII, CF. Considerável
parcela dos estudiosos critica a expressão “Presunção de Inocência”,
considerando-a imprópria e inapropriada mesmo, isso porque se o investigado ou
réu fosse presumido inocente não se poderia contra ele proceder durante a
“persecutio criminis”, seja na fase investigatória, seja na fase processual. O
presumido inocente estaria blindado contra o aparato repressivo estatal de
forma absoluta, de modo que autores como Manzini, Damásio Evangelista de Jesus,
Julio Fabbrini Mirabete, entre outros, propõem como mais adequada a expressão
“Estado de Inocência”, já que nesse caso o suspeito de cometer infração penal
apenas não seria considerado culpado até sentença transitada em julgado, mas
não presumido inocente. Esse “Estado de Inocência” permitiria a investigação a
seu respeito, o processo criminal e, por fim, a alteração do “estado de
inocência” para outro “estado” de condenado sempre que fosse comprovada sua
culpabilidade mediante um devido processo legal. [1]
Enfim, para tal corrente de pensamento a chamada
“Presunção de Inocência” significaria uma condição estática em que o eventual
suspeito de infração penal se tornaria intocável, vez que presumido inocente e
contra um inocente nada se pode fazer. A presunção teria então o efeito de
cristalizar a condição de inocência, tornando-a imutável e intocável pelo
Estado. Por outro lado a expressão
“Estado de Inocência” teria caráter dinâmico suficiente para permitir a
dialética investigatória e processual, capaz de ratificar a inocência ou mesmo de
contradizê-la mediante a produção de provas suficientemente robustas para
dirimirem qualquer dúvida. Afinal tratar-se-ia apenas de um “estado” que pode se
alterar com o tempo e com a atividade persecutória estatal informada pelo
devido processo legal.
Com o devido respeito é de se discordar de tal
entendimento, defendendo-se a tese de que a nomenclatura “Presunção de
Inocência” é tão adequada quanto “Estado de Inocência”. Na verdade a crítica
acima mencionada decorre de certa falta de reflexão que leva a um equívoco
quanto ao sentido da palavra “presunção”, seja no âmbito semântico, filosófico
ou jurídico. Não obstante, tal concepção equivocada é frequentemente repetida e
exerce atração nos meios acadêmicos, o que justifica a abordagem do tema neste
trabalho, visando superar aquilo que Hilary Putnam descreveu como “o fascínio
que todas as ideias incoerentes parecem exercer”. [2]
Somente uma errônea compreensão da palavra “presunção”
poderia levar alguém a crer que quando esta é utilizada pode petrificar uma
condição e torná-la imune a alterações ou comprovações em contrário.
No vernáculo “presunção” tem duas acepções: primeiro pode
significar a vaidade exagerada. É nesse sentido que se diz que “Fulano é um
presunçoso”. Trata-se do autoengano daquele que se supervaloriza. [3] Note-se
que já aqui a palavra “presunção” não tem força de impor uma verdade intocável,
muito ao reverso, denota uma situação em que o presunçoso se autoengana e a
presunção desmente a imagem falsa e supervalorizada que ele tem de si mesmo.
Mas, não é esse o sentido em que a palavra é utilizada na expressão jurídica
“Presunção de Inocência”. Ali se trata
de “conjecturar; supor; imaginar; entender, baseando-se em certas
probabilidades; prever; pressupor; suspeitar”. [4]
Dessa forma quando digo que “Presumo que haja alguém naquele quarto”, não estou
afirmando nada com certeza e se a porta for aberta e não houver ninguém
contradição alguma haverá com a minha frase inicial. Eu apenas pressupunha
haver alguém ali, podendo haver ou não. A presunção não se confunde com a
certeza e muito menos com a verdade. É apenas e nada mais do que um juízo de
probabilidade.
Mas, é típico do mundo contemporâneo e seus relativismos,
confundir, mesmo na seara ético – filosófica, presunção, certeza e verdade.
Tudo acaba se mesclando numa miscelânea que produz insegurança e erro. Conforme
aduz Popper:
“O relativismo é um dos muitos crimes dos intelectuais. É
uma traição à razão, e à humanidade. Suponho que o relativismo da verdade
defendido por certos filósofos é uma consequência da mistura das ideias de verdade e de
certeza; pois, no que concerne à certeza, podemos, de fato, dizer que há graus
de certeza, ou seja, mais ou menos certeza. A certeza também é relativa no
sentido de que ela sempre depende do que está em jogo. Suponho, portanto, que
ocorre aqui uma confusão entre verdade e certeza; e em vários casos isso também
pode ser demonstrado”. [5] Por isso dizer que há várias verdades, que há
a sua verdade e a minha verdade é um absurdo lógico. O que pode variar são as
certezas, que nada mais são do que estados de espírito mutáveis e variáveis. A
verdade, por seu turno, é objetiva e absoluta; somente a certeza é subjetiva e
relativa. [6]
Transpondo a questão para o campo jurídico, pode-se
afirmar que é reconhecendo essa distinção entre certeza e verdade que se pode
superar a falsa dogmática dicotômica da verdade formal e verdade real no
processo. Atualmente assume-se que “a verdade almejada pelo processo é uma
‘verdade processual’, ou seja, ‘uma verdade judicial, obtida por um método
processualmente legítimo’ e que ‘nada mais é
do que o estágio mais próximo possível da certeza’”. [7]
Pois bem, se a certeza é um conceito de natureza relativo
– subjetiva, comportando alterações e refutações e, portanto, encontrando-se
muito aquém do conceito de verdade (objetivo e absoluto) para o qual pode ser
tão somente e no máximo um caminho de busca eterna [8], a
presunção, que não se confunde com a certeza nem com a verdade, está ainda
abaixo da primeira. A presunção, conforme já dito, sequer pode equiparar-se à
certeza, muito menos à verdade incontestável. Ela não passa de um mero juízo de
probabilidade encontrado na experiência daquilo que normalmente ocorre, daquilo
que em regra acontece ou é. Na presunção nada mais se faz a não ser um
raciocínio dedutivo em que se conclui do geral para o particular. Por isso, se
a certeza é relativa, muito mais o é a presunção.
Em sua origem filosófica a presunção somente se concebe
de forma relativa, podendo ser conceituada como um “juízo antecipado e
provisório, que se considera válido até prova em contrário”. [9]
É somente no mundo do Direito, com sua faceta
autopoiética revelada por Willke e Luhmann, que se apropriaram do conceito
biológico de Maturana (autopoiese) [10] que
se edifica a divisão das presunções em absolutas (“jure et de jure”) e
relativas (“juris tantum”). Realmente no mundo jurídico se concebe a presunção
absoluta como aquela que não admite contestação e a relativa como um “conceito
antecipado, válido até prova em contrário”. [11] Mas,
isso somente é possível porque o Direito tem realmente uma característica
autopoiética. O Direito define e produz o próprio Direito e por isso pode se valer
de ficções e presunções absolutas inviáveis em outros campos do saber como as
ciências naturais ou exatas. [12]
Por isso pode haver uma presunção legal absoluta de imputabilidade para os
maiores de 18 anos mentalmente capazes e de inimputabilidade para os menores. Isso não é verdade e nem sequer certeza, mas
apenas uma presunção a que a lei dá força absoluta, inadmitindo prova em
contrário. Mas, isso é um fenômeno que somente pode se conceber no mundo
jurídico devido à conjunção entre Direito e Poder através da qual a
normatividade impõe um dever ser, algumas vezes em conflito com o ser. Enfim, o
Direito, por meio da norma, tem a faculdade de edificar um dever ser
conveniente e oportuno a seus fins.
É nesse mundo jurídico que se conforma o Princípio da
Presunção de Inocência e em sua ereção não se emprega certamente qualquer
ficção ou presunção absoluta. A Presunção de Inocência constitucionalmente
fundada não foge do sentido vernacular e filosófico da palavra e, portanto,
somente pode ser uma presunção relativa. Nessa qualidade ela obviamente permite
prova em contrário e não veda ou blinda o imputado de investigações criminais,
processos, medidas cautelares, prisões provisórias etc., desde que haja justa
causa e proporcionalidade para tanto. Assim, havendo suspeita do cometimento de
infrações penais, qualquer pessoa, embora acobertada pela Presunção de
Inocência, pode e deve ser investigada e até processada criminalmente acaso
haja substrato para tanto. Pode ser inclusive submetida a medidas invasivas de
direitos fundamentais, sempre com
equilíbrio e respeito ao devido processo legal .
Conforme leciona Malatesta, a presunção se refere ao que
é “ordinário” e o ordinário nos homens é a inocência, sendo o crime a exceção.
Portanto, a Presunção de Inocência é naturalmente deduzida da vida real, já que
a presunção diz respeito ao “ordinário” e não ao certo ou necessário. [13]
Entretanto, não se confunde com a certeza e muito menos com a verdade
intocável, conforme erroneamente alguns entendem ao rechaçar a terminologia
“Presunção de Inocência”. O raciocínio
presuntivo é afeto à probabilidade, “partindo da premissa do ordinário modo de ser das coisas” e
chegando “apenas a conclusões prováveis”.
É somente na certeza que parte da “premissa do constante modo de ser das coisas”, chegando-se a “deduções certas”.
[14]
Assim sendo, toda crítica à expressão “Presunção de
Inocência” é produto de uma falta de reflexão adequada sobre a natureza da
presunção em geral (no âmbito semântico e filosófico) e especificamente da
Presunção de Inocência em sua aplicação jurídica que se faz em consonância
interdisciplinar com os demais campos do conhecimento antes mencionados, de
modo que somente pode se conformar como uma presunção relativa ou “juris
tantum”, afastando qualquer possibilidade de blindagem absoluta do indivíduo
suspeito de cometimento de infração penal ou impropriedade terminológica na
denominação do princípio constitucional em destaque.
Finalmente deve-se salientar que embora o termo “Estado
de Inocência” não seja de todo inapropriado, é, na verdade, bastante preferível
a terminologia usual da “Presunção de Inocência”, na medida em que a presunção
faz com que o ônus da prova se coadune com o sistema processual penal em que o
acusado ou investigado nada tem que provar, cabendo ao Estado, por meio do
órgão persecutor, comprovar a culpabilidade. Isso porque há realmente,
militando a favor do réu ou investigado, uma presunção legal de inocência, que
o libera do ônus probatório e o favorece com a regra do “in dubio pro reo” (Princípio
do “Favor Rei”). A presunção legal, ainda que “juris tantum”, tem essa
propriedade de liberar aquele por ela beneficiado do “onus probandi”, que é
exatamente o que ocorre com a “Presunção de Inocência” em absoluta consonância
com as regras garantistas de um devido processo legal democrático. Note-se que
um mero “estado”, comporta muitas vezes a necessidade de prova, como ocorre com
o estado civil das pessoas, com a condição, por exemplo, de idoso para se
beneficiar de garantias especiais, entre outros. Por isso a palavra
“presunção”, longe de ser inadequada, é totalmente coerente com a conformação
de um Processo Penal Democrático e Garantista, sendo oportuna a lembrança da
visão de Binder quanto à real finalidade do Processo Penal e do Direito em geral,
que é a de garantia do indivíduo em relação ao Poder Estatal, surgindo o
Direito, e em seu seio o Princípio da Presunção de Inocência, sempre como um
limite a um Poder arbitrário. [15]
REFERÊNCIAS
ABBAGNANO,
Nicola. Dicionário de Filosofia.
Trad. Ivone Castilho Benedetti. 4ª. ed. São Paulo: Martins Fontes, 2000.
BINDER,
Alberto M. O descumprimento das formas
processuais. Trad. Ângela Nogueira Pessôa e
Fauzi Hassan Choukr.. Rio de Janeiro: Lúmen Juris, 2003.
FERREIRA,
Aurélio Buarque de Hollanda. Pequeno
Dicionário Brasileiro da Língua Portuguesa.
8ª. ed. Rio de Janeiro:
Civilização Brasileira, 1949.
GOYARD
– FABRE, Simone. Os fundamentos da ordem
jurídica. Trad. Maria Ermantina Galvão. São Paulo: Martins Fontes, 2002.
MALATESTA,
Nicola Framarino Dei. A lógica das provas
em matéria criminal. Trad. Paolo Capitanio. Campinas: Bookseller, 1996.
NAGEL, Thomas. A
última palavra. Trad. Carlos Felipe Moisés. São Paulo : Unesp, 2001.
NUNES
JÚNIOR, Flávio Martins Alves. Princípios
do Processo e outros temas processuais. Volume I. Taubaté: Cabral, 2003.
POPPER, Karl Raimund. Em busca de um mundo melhor. Trad.
Milton Camargo Mota. São Paulo: Martins Fontes, 2006.
PUTNAM,
Hilary. Realism and Reason: Philosophical
Papers. Volume 3. Cambridge :
Cambridge University Press, 1983.
SIDOU,
J. M. Othon (org.). Dicionário Jurídico
da Academia Brasileira de Letras Jurídicas.
9ª. ed. Rio de Janeiro: Forense
Universitária, 2004.
SOUZA NETTO, José Laurindo de. Processo Pneal Sistemas e Princípios. Curitiba: Juruá, 2004.
[1]
SOUZA NETTO, José Laurindo de. Processo
Pneal Sistemas e Princípios. Curitiba: Juruá, 2004, p. 159 – 160.
[2]
Apud, NAGEL, Thomas. A última palavra.
Trad. Carlos Felipe Moisés. São Paulo: Unesp, 2001, p. 23. Ver também no
original: PUTNAM, Hilary. Why
reason can’t be naturalized. In: IDEM, Realism
and Reason: Philosophical Papers. Volume 3.
Cambridge : Cambridge University
Press, 1983, p. 194.
[3]
FERREIRA, Aurélio Buarque de Hollanda. Pequeno
Dicionário Brasileiro da Língua Portuguesa.
8ª. ed. Rio de Janeiro:
Civilização Brasileira, 1949, p. 1003.
[4]
Op. Cit., p. 1003.
[5] POPPER,
Karl Raimund. Em busca de um mundo melhor.
Trad. Milton Camargo Mota. São Paulo: Martins Fontes, 2006, p. 16 – 17.
[6]
Op. Cit., p. 17.
[7]
NUNES JÚNIOR, Flávio Martins Alves. Princípios
do Processo e outros temas processuais. Volume I. Taubaté: Cabral, 2003, p.
109. O autor ainda traz à colação o escólio no mesmo diapasão de Ada Pellegrini
Grinover.
[9]
ABBAGNANO, Nicola. Dicionário de
Filosofia. Trad. Ivone Castilho Benedetti. 4ª. ed. São Paulo: Martins
Fontes, 2000, p. 790.
[10]
GOYARD – FABRE, Simone. Os fundamentos da
ordem jurídica. Trad. Maria Ermantina Galvão. São Paulo: Martins Fontes,
2002, p. 220 – 221.
[11] SIDOU, J. M. Othon (org.). Dicionário Jurídico da Academia Brasileira
de Letras Jurídicas. 9ª. ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2004,
p. 679.
[12] GOYARD – FABRE, Simone. Op.
Cit., p. 221. É claro que a autopoiese do Direito não pode ser acatada de forma
absoluta e acrítica, tornando esse campo imune a valores e influências externas
e concebendo a criação jurídica como algo pasteurizado, hermético, meramente
operacional, formalista e funcional. No entanto, é inegável que Willke e
Luhmann expuseram um problema epistemológico da ciência normativa que é o
Direito, qual seja, que seu objeto de estudo
é produto de sua própria criação.
[13]
MALATESTA, Nicola Framarino Dei. A lógica
das provas em matéria criminal. Trad. Paolo Capitanio. Campinas:
Bookseller, 1996, p. 133 – 134.
[14]
Op. Cit., p. 178.
[15]
BINDER, Alberto M. O descumprimento das
formas processuais. Trad. Ângela Nogueira Pessôa e Fauzi Hassan Choukr.. Rio de Janeiro: Lúmen
Juris, 2003, p. 41.
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